Numa tarde de domingo, avisto algo se arrastando por uma rua de pedra fincada no Bairro Serrano.
Chegando perto, vi que se tratava de um Poodle misturado, destruído. Ele caminhava com dificuldade, cabeça baixa e rabinho entre as pernas. Mal se segurava de pé.
Algumas feridas estavam visíveis. Escoriações na cabeça e outras menores espalhadas pelo corpo.
Quando o chamei, ele se encolheu ainda mais, mas não tentou fugir, talvez sentindo que não teria forças pra escapar. Sua postura foi se mostrar submisso e aceitar o que eu decidisse por ele.
Permitiu a aproximação, aceitou os primeiros afagos e não ofereceu qualquer resistência quando o peguei e o acomodei no banco do carro.
A primeira providência era alimentá-lo e oferecer-lhe uma boa cama. Dei a ele o nome de Chicolico, um apelido emprestado do meu filho, que hoje, adolescente, já não o vê com os mesmos olhos.
Ele comeu com a gulodice de quem não enchia a barriga há muito tempo. Bebeu como se estivesse há dias sem encontrar uma poça de chuva.
Buscava a grade e o portão como se procurasse uma saída. Devia estar há dias procurando o caminho de casa e não iria desistir de reencontrar seus donos.
Como um urso enjaulado, ele caminhava de um lado a outro da grade, atento a cada movimento.
Nem mesmo a companhia de Hanna e Duda foi suficiente pra distraí-lo. Seu foco parecia ser apenas encontrar seus donos.
Infelizmente, as marcas do abandono estavam por todo lado. Não havia donos procurando por ele.
Ele veio a mim, como se pedisse uma explicação. As perguntas estavam todas ali, estampadas nos seus olhos: _O que está acontecendo? Que lugar é aqui? Quando meus donos virão me buscar?
As respostas eram as piores que um lobinho como ele poderia receber. Preferi o silêncio. O tempo cuidaria de amenizar as coisas.
Alguns brinquedinhos poderiam ajuda-lo a esquecer um pouco o portão. E foi o que funcionou.
No dia seguinte, visita certa ao veterinário, com direito a banho e tosa. Esperávamos que isso aliviasse um pouco o incômodo que ele claramente sentia. O pelo muito sujo já estava duro, o que causava grande desconforto, além de contribuir para infecção nas feridas de pele.
Infelizmente, o que a tosa revelou não foi o que esperávamos encontrar. Muitas feridas, algumas já inchadas e infeccionadas. Furos por todo o corpo, possivelmente causados por mordidas de outros cães.
Investigando na região, descobrimos que ele tinha sido visto dias antes entre uma matilha que acompanhava uma fêmea no cio, o que nos dava uma boa pista da origem daquelas feridas.
As escoreações na cabeça eram sinais de um possível atropelamento.
Uma otite crônica já provocava um inchaço que chegava ao pescoço. Foi possível saber que teríamos muito trabalho pela frente.
Ele tinha dores, mas nada doía mais que a certeza de ter sido traído, de não poder mais contar com quem deveria protegê-lo.
Ele estava triste, muito mais triste do que se poderia esperar de um cãozinho naquelas condições. Chegamos a temer que ele não tivesse forças pra reagir.
Os exames clínicos também não traziam bons prognósticos. Colheu sangue e fez todos os exames possíveis. Ele precisaria de muitos remédios, vitaminas e boa ração, por um bom tempo.
Em alguns momentos, ele parecia reconhecer e demonstrava gratidão, mas seus olhos expressavam uma tristeza que vinha da alma.
Em poucos dias ele já estava mais forte e pôde, finalmente, iniciar a vacinação. Era hora de experimentar a vida em matilha. Ele precisava saber que fazia parte de uma família, que tinha amigos, que alguém se importava com ele.
Passou a conviver mais de perto com Duda e Hanna, e pôde também conhecer Pintada, Estopa e até a Aninha, outra Poodle ainda mais estragada do que ele, resgatada há quase um ano dos porões da SMPA, e que ainda está por aqui, em tratamento.
Não é segredo que essa turma coloca qualquer lobinho nos eixos. Não há melhor remédio para curar dores da alma do que ser integrado a uma matilha equilibrada e preparada para o trabalho de recuperação e socialização de outros cães.
O comportamento assustado não durou muito tempo. Poucos minutos foram suficientes pra ele se sentir a vontade e marcar o território como novo macho alfa. Deve ter imaginado que ali ia se dar bem. Com tantas fêmeas a rodeá-lo, o menino se animou rapidinho.
Ele se aproximou da Aninha, notando que ele não era o único a precisar de cuidados. Ela também estava bem debilitada, apesar dos quase 10 meses desde o resgate.
Chicolico ainda estava triste, mas já começava a despertar. A hora do banho, pra ele, era a melhor de todas. Ele gostava de se sentir cuidado.
Um dia ele deve ter tido esses cuidados. Por algum motivo, tudo acabou, sem aviso, sem razão. Algumas pessoas querem ter um animal de estimação, mas são incapazes de sentir afeto por eles.
E aí, quando a velhice chega, quando adoecem ou quando o tempo desmancha a novidade, o abandono acaba sendo a solução pra se verem livres do “incômodo”.
O Chicoloco é um cachorrinho do bem. Ele é carinhoso, adora um colo, corre e pula feito pipoca quando percebe que alguém está dando trela pra ele e sabe até ficar de pé nas perninhas traseiras pra pedir carinho.
Banho foi o que não faltou pra ele. Alguns probleminhas de pele impuseram banhos semanais com shampoo especial, mas essa era a parte do tratamento que ele mais gostava.
Já haviam se passado uns dois meses desde o resgate e ele melhorava a cada dia. A essa altura, já estava pra lá de vacinado, havia sido castrado e já deixara a tristeza de lado.
Assim que ele melhorou um pouco, achamos que era a hora de aliviar aquele tratamento pesado. Seu primeiro passeio foi em companhia de Hanna e Duda. Descobrir o mundo é algo que todo cãozinho merece.
Experimentou a alegria de poder correr livre, brincar, pular, fazer arte e entender que banho também pode ser consequência de uma bagunça bem feita.
Um dia inteiro de aventura foi pouco pra ele. Conheceu amigos novos, que nem sabia que existiam, e entendeu que estamos todos aqui pra compartilhar o mesmo mundo e que precisamos nos respeitar e conviver em harmonia.
Mostrava-se encantado com cada novidade. Cada barulho diferente era motivo pra levantar as orelhas e querer investigar.
Naquele dia, o Chicolico correu até ficar mole e colocar a língua pra fora. Ele ainda trazia as marcas das escoriações, porque o pelo nos lugares das feridas demoraria mais pra nascer.
Mesmo assim, ele parecia feliz. Aos poucos, começava a esquecer a vida que teve um dia, e que, pra falar a verdade, deve ter sido boa em algum momento.
Impressiona a transformação desses bichinhos, quando se sentem amparados e protegidos. Eles são gratos, e sabem retribuir e demonstrar isso.
Durante o passeio, nos raros momentos de descanso e quietude, ele vinha a mim e fazia questão de se aconchegar. Estava claro que ele não tinha medo de gente, nem tinha experiências ruins.
Pelo contrário, gosta muito de colo e adora companhia humana. Ele já teve uma família e foi feliz um dia.
Uma pena que suas feridas não estivessem limitadas às marcas dos dentes de outros cães ou às escoriações de um possível atropelamento. Se fosse só isso, poderíamos levantar a hipótese de uma fuga ocasional, de um descuido com portão aberto ou coisas do gênero.
Havia outras marcas, mais antigas, de um tempo em que ele ainda não estava na rua. Não eram de maus-tratos, mas de omissão. Talvez seus donos não tivessem condições de levá-lo a um veterinário, de pagar tratamentos, de comprar remédios.
E lobinhos como ele precisam desses cuidados.
O tempo passou e ele se transformou no sujeito mais brincalhão e agitado da história. É capaz de fazer correria em espaço reduzido, só pra deixar transbordar a alegria de ser alimentado, de ser acariciado, afagado e de ouvir seu nome.
Chicolico já é seu nome agora. Ele já reconhece e atende.
As brincadeiras com a turma são diárias. Todo dia é dia de farra e ele está sempre presente.
Hanna e Duda estão sempre no comando e, quando elas cansam, Pintada assume a dianteira, como numa migração de patos selvagens.
Em alguns momentos, Hanna e Duda se fecham, como se a brincadeira fosse só delas, mas ele logo deixa claro que também gosta de brincar e que vai entrar na brincadeira, mesmo que seja a força.
Finalmente, tínhamos um cãozinho recuperado, alegre e muito bonitinho pra apresentar. Aquele Chicolico do dia do resgate não existe mais. Pelo menos por enquanto, ele é parte de uma matilha bem equilibrada, cujo lema é: divertir-se, sempre.
Os mais carentes são aqueles que talvez saibam que estão aqui de passagem. Chicolico e Aninha pedem carinho, sem cerimônia.
Chegam a disputar atenção, e haja dedos pra coçar os dois ao mesmo tempo e ainda manusear a câmera fotográfica.
É certo que o momento da despedida se aproxima. A Aninha ainda tem tratamento pela frente, mas o Chicolico já pode seguir seu caminho. E tem que ser um caminho que valha muito a pena.
Essa é a nossa missão. Mais que recuperá-lo e prepará-lo para adoção, precisamos encontrar pra ele os melhores donos do mundo, pra que ele não sinta saudade de nosso território.
E a iminente despedida já é sentida. Ao modo dos lobos, eles se despedem.
_Foi bom, amigo, ter você aqui em nossa casa.
_Você vai ser feliz. Alguém especial está esperando por você.
_Nem vem, Chicolico. Você está pesado pra pular em mim. Vai ter que fazer regime como eu.
E de agora pra frente, todo dia terá festa de despedida.
De toda a turma, a Pintada é nossa grandalhona treinada pra receber outros cães. É dela a tarefa de chamá-los pra brincar e introduzi-los na matilha.
Se a Pintada aceita o novato, todos os outros entendem que ele agora é parte da família. E nunca houve um só cãozinho que ela não aceitasse.
E não falta chamego entre eles. Pra quem entende a linguagem corporal dos lobos, essa foi uma despedida realmente triste. Em alguns dias, os novos donos do Chicolico vão aparecer e levá-lo nos braços, e aqui vai ficar um vazio, pra cada um de nós.
Enquanto esse dia não chega, a ordem é ser feliz.
Não importa quanto tempo demore. O Chicolico não está preso ou confinado em canil, em gaiolas, não está triste e nem será devolvido pras ruas.
Ele é um cãozinho muito feliz. E queremos pra ele donos que o mantenham assim, pelo resto de sua vida. Nosso menino é jovem e está recuperado. Venceu tudo o que tinha pra vencer.
De remédios ele não precisa mais. Depois de um longo tratamento, e o resultado negativo para leishmaniose, ele pôde concluir a vacinação. Já tem as três óctuplas e as três leishtecs. Foi também castrado.
Precisa de donos que dêem a ele uma família, e não apenas uma casa, que tenham condições de dar sequência aos mesmos cuidados que teve aqui, e que, mais importante que tudo isso, que assumam o compromisso de fazer com que ele continue sendo o mais feliz e alegre cãozinho do mundo.
O Chicolico é um Poodle misturado com Basset. Embora parrudinho, pesando oito quilos, ele tem as perninhas curtas e é da mesma altura que nossa esmirradinha Estopa, de apenas 5 quilos.
Gosta de latir e não economiza. Qualquer coisinha é motivo pra ele soltar a voz.
E que seja feita a Vossa vontade na vida de cada lobinho que passar por este abençoado território.
Atualizando a história, o Chicolico foi adotado e viveu por três meses em companhia de uma ótima família. Foi estimado, tinha duas crianças que faziam dele gato e sapato (E ele adorava), tinha passeios regulares e podia ainda conviver com a família, dentro de casa, já que morava em um apartamento.
Entretanto, algo não ia bem. Os relatos traziam notícias de um comportamento que não era dele. O fato é que ele não se adaptou. A adoção não deu certo e ele precisou ser devolvido. Sabíamos que ele estava muito bem tratado e o cãozinho que recebemos de volta estava gordo, com gravatinha, cheirando a Pet Shop.
Sabíamos que ele era estimado naquela casa. Nunca vamos entender ao certo o que aconteceu. Talvez a casa fosse grande demais, talvez pequena demais, talvez tivesse gente demais, ou gente de menos. São situações que não explicam e nem justificam. O fato é que estávamos apreensivos com aquela devolução. Será que ele se lembraria de nosso território? Será que ficaria bem com seus antigos amigos?
Eu o peguei no meio da tarde e, durante todo o trajeto, ficou deitado no banco de trás. Parecia tenso e sem saber o que estaria acontecendo. Me recebeu bem, me reconheceu, mas não foi com a festa que eu esperava.
Assim que o desci do carro, já na varanda, ele começou a correr a cheirar tudo. Em seguida chegaram Hanna e Duda e começaram a fazer festa com ele, pulando e chamando-o pra brincar. Ele topou logo entrar na farra.
Depois fomos reencontrar suas antigas companheiras de suíte e a festa foi a mesma. Ele corria, brincava, cheirava tudo e, claro, marcou o território, tentando apagar as marcas do último lobinho alfa que passou por aqui.
No dia seguinte, decidimos levá-lo para um passeio. E ali ele relembrou momentos que talvez não tenha esquecido.
Correu com Duda e Hanna até ficarem moles.
Depois reivindicou o punhado de colo, deixando claro que continuávamos amigos.
Do colo para as aventuras.
E ele estava mesmo disposto a “tirar a barriga da miséria”.
Depois do mergulho, tinha que correr pra se secar.
Depois da corrida, era só rolar na terra vermelha que tudo ficaria bem.
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