O que se vê nesta história é absoluto descaso de um poder público que, sem nenhum compromisso de propiciar oportunidade de emprego e vida digna a uma população menos afortunada, fecha os olhos para a triste realidade dos animais de tração, como se isso fosse um problema menor. (Isso vale pra qualquer outro animal).
O resultado é a proliferação do mal. Esses animais estão por aí, caminhando entre os carros, puxando peso tantas vezes maior que o seu próprio, com feridas abertas e infeccionadas, magros, famintos, doentes e sofridos.
E as pessoas nem sequer os notam. A correria do dia a dia nos impede de perder tempo com coisas menores.
A leitura de tudo isso é falta de evolução de nossa espécie, que ainda traz enraizados costumes que um dia foram avalizados por uma tal teoria antropocêntrica, que colocou o homem no centro do universo, retirando todos os demais seres vivos da esfera das preocupações morais humanas.
A teoria antropocêntrica sugere que animais não têm alma e que foram criados para servirem ao homem. E assim tem se perpetuado, por covardia, por conveniência, por ganância, por ignorância ou seja lá qual for o nome.
Claro que existe um problema social. É preciso dar oportunidade de trabalho aos pais de família. Não dá pra exigir compaixão por um cavalo, de um pai de família que não tem comida pra alimentar seus próprios filhos. Mas a culpa é de um poder público corrupto e covarde.
Não devo me estender na causa primária de tudo isso por razões óbvias. Que a vida leve a cada um os ônus e os bônus de seus atos.
O motivo desse desabafo é o Gustavo, ou Guto, para aqueles que, a partir desta matéria, passarem a acompanhar sua evolução, seu tratamento e torcerem por “sei lá o quê”.
Infelizmente, não dá mais pra torcer por recuperação, vida digna, felicidade e nada do gênero. Ele não tem mais tempo pra nada disso. Talvez sua história sirva apenas pra ensinar um pouco de compaixão aos homens, ou talvez para dar uma segunda chance a outros de sua espécie.
Em seu corpo havia uma marca, supostamente gravada com nitrogênio líquido (queima da mesma forma), indicando que o Guto já teve um registro junto à Prefeitura de Belo Horizonte. A intenção desse “cadastramento” é apenas reduzir o despejo de entulho em vias públicas ou lotes vagos. O bem estar dos animais nunca esteve sequer às margens das intenções.
As atrocidades cometidas são muitas, mas as autoridades fecham os olhos. Instrumentos de tortura são usados livremente, nas barbas do Estado, sem que nada seja feito. Leis que proíbem maus-tratos existem aos montes, mas elas não são aplicadas aos cavalos, porque o poder público é omisso e não fiscaliza.
E se não o faz, é pra esconder o descaso com a vida humana, a falta de condições de trabalho, de oportunidade, de escola, de saúde, etc. O problema social existe, mas fechar os olhos para a realidade dos animais de tração não é a solução.
O fato é que o tal código não é a única marca existente naquele animal quase sem vida. Tentaremos mostrar cada uma delas e explicar o que significam.
O cachimbo é um pedaço de pau com um laço de corda ou corrente que é inserido e torcido no lábio superior do cavalo (que é um importante órgão do sentido do tato).
O animal sente tanta dor que paralisa e as pessoas fazem o que querem com ele, podendo tal ação, inclusive, evoluir para lesões nervosas ou circulatórias locais por garroteamento.
Não satisfeitos, alguns colocam esse cachimbo na orelha, o que é ainda mais doloroso. O agravante é que a orelha possui cartilagem que fratura e “quebra” o pavilhão da orelha e o cavalo fica “troncho”.
O resultado do uso prolongado do cachimbo é o que se vê nas fotos abaixo. Na linguagem humana, chama-se “orelha quebrada”. Para os animais, algo que não conseguem descrever. Eles não têm vocabulário pra isso e nós não temos capacidade de avaliar a dor que eles sentem.
Já para frear o cavalo, os nossos carroceiros inventaram um freio externo: é uma peça de ferro, côncavo, com duas fileiras denteadas ou bem afiadas, colocadas sobre o focinho do cavalo. Em vez de acionar o freio da carroça, o condutor puxa as rédeas até essas lâminas entrarem couro adentro, até o periósteo, na região do chanfro (continuação do osso frontal da cabeça entre os olhos e o focinho).
É uma lâmina óssea fina, com periósteo ricamente inervado e sensível. Corresponde à cartilagem nasal de humanos. Outros usam um pedaço de ferro bem pesado, em meia lua, ou corrente, com o mesmo objetivo de frear o cavalo.
Essas práticas são usadas livremente pelos carroceiros. Substituem o freio das carroças pelos instrumentos de tortura no corpo do animal. Eles paralisam de dor. A pergunta que fica é: Por que isso ainda não foi combatido?
O Guto traz também as marcas da lâmina na região do chanfro. A área rosada indica que esteve em carne viva em um passado não muito distante. Em sua testa, outra marca de um ferimento profundo e antigo, fruto de mais algumas torturas.
É uma pena amigo. Sua história talvez cause indignação, revolta e até compaixão. Mas nada disso vai apagar tudo o que você sofreu. Quem sabe outros de sua espécie se beneficiem de suas marcas?
Para os governantes brasileiros, o bem estar dos animais é um detalhe sem importância.
Guto é um cavalo triste. Seus olhos não têm mais vida. Pouco acima deles, mais marcas de tortura e ferimentos recentes. Ele já viveu uns 40 anos, dos quais mais de 39 em total sofrimento. Já tivemos notícias de animais que dormem atrelados às carroças, porque seus donos já os deixam prontos para o dia seguinte.
Querem diminuir o trabalho ou terminaram o dia bêbados e não têm forças pra desatrelar o animal.
Talvez não tenham se lembrado que existia um cavalo. Se a teoria do animal máquina veio de cientista renomado (René Descartes), como esperar algo diferente de alguém que não teve oportunidade de estudar?
O lombo também traz muitas marcas. Feridas em carne viva por todos os lados.
A falta de carne entre os ossos e o couro tornava seu corpo vulnerável ao contato com a arreata e com todos os demais itens que a ele foram atrelados.
O estado de desnutrição era evidente e as razões estavam um pouco mais à frente, mais precisamente, dentro de sua boca.
Na arcada superior, apenas um dente.
Ao lado daquele dente solitário, um corte profundo, espaço deixado pelo último dente arrancado pela força dos freios.
Nesse corte, muito capim e resto de tudo que ele tentava mastigar. Os remédios vão ajudar, mas a cicatrização ali vai demorar muito porque ele não poderá ficar em jejum.
Já aprendemos que muitos animais morrem primeiro pelos olhos.
E essa regra se aplica também aos cavalos. Tentei fotografar seu olho aberto, pra buscar um pouco de brilho, mesmo que fosse por reflexo do flesh da máquina.
Mas a tentativa foi em vão. Ele passou por todos os procedimentos médicos com resignação, com o olhar caído, como se não se atrevesse a olhar nos olhos dos homens.
Mais abaixo, as marcas não davam trégua. Muitas feridas abertas se espalhavam em suas 4 patas.
É que ele ficava amarrado pelas pernas e, seguramente, não eram com cordas de algodão. Arame farpado costuma ser mais eficiente porque, sentindo dor, eles não se arriscam a sequer caminhar. É a forma encontrada para que eles se mantenham parados.
Animais de tração não têm direito de se movimentar livremente.
O estado de saúde do Guto não é bom. Não sabemos se ele chegará a engordar, se um dia terá alguma qualidade de vida, ou se morrerá lutando pra viver.
Um tratamento de um animal neste estado já seria naturalmente lento. No caso dele, a idade torna tudo mais difícil. A luta, aqui, é também contra o tempo.
Ele já não teria muito tempo de vida se estivesse bem tratado. Nessas condições, não é possível sequer saber se ele chegará ao final do tratamento e se poderá ser adotado.
Ainda estão sendo feitos testes com ele pra descobrir o que ele come com mais facilidade. De farinha molhada a capim triturado, tudo tem sido oferecido pra ele. Se um dia os ossos salientes começarem a se cobrir de carne e seu couro enrugado começar a se esticar, já terá sido um grande avanço.
Ele está sendo acompanhado bem de perto pela Dra. Bárbara Goloubeff, que já apresentou a ele sabores que ainda não conhecia. De vermífugo com sabor adocicado a rapadura triturada.
Os pedaços dançavam em sua boca como azeitonas em boca de banguela, mas ele insistia e mostrava que estava mesmo gostando daquilo.
Esta semana ele experimentou bala delícia. Afinal, a rapadura é dura demais pra quem não tem muitos dentes e ele merecia um doce mais adequado à sua condição.
Ele adorou e parecia querer voar com o doce agarrado em seu palato. Já está mais animado e até arriscando alguns trotes.
A quantidade de baba deixada nas mãos da Dra Bárbara é um sinal de prazer. Ele salivava e pedia mais.
Seria bom demais se estivéssemos enganados quanto ao seu destino e ele, um dia, voltasse a galopar como um cavalo selvagem. Quem pode prever o futuro?
No andar debaixo, uma criatura “pampa de preto” chamada Liz esperava alguma rebarba.
Depois da sobremesa, era hora de voltar sozinho para a baia, não sem antes passar pela cerca e disputar um pouco de capim com o alazão da fazenda.
Se o Guto, um dia, recuperar o peso e a saúde, mostraremos aqui sua evolução.
Se ele descansar antes de terminar o regime de engorda, ficará o registro de uma história das mais tristes que já publicamos.
Se pra ele não há tempo, outros de sua espécie ainda estão por aí, atrelados em carroças.
E, enquanto o poder público não entender que somente com oportunidade de trabalho e vida digna as pessoas deixarão de explorar animais, nada vai mudar.
Àqueles que gostariam de fazer alguma coisa, saibam que, junto com o Guto, outros 4 foram resgatados, também salvos da escravidão e tortura.
Esses outros estão em melhores condições e poderão ser adotados. Alguns já estão prontos.
Mas precisamos enfatizar que adoção de cavalo exige desprendimento e compaixão dos adotantes. Eles não devem ser abatidos em matadouros clandestinos (Ainda precisamos enfatizar isso), nem poderão voltar para a escravidão, nem para carroça, nem para serem montados por crianças pequenas.
Eles precisam de aposentadoria. Precisam de pasto e liberdade, além da promessa de que em seu lombo, não será colocado um só grama de peso, nunca mais.
O tempo que lhes resta precisa ser vivido, sem dores. Eles precisam viver o mais próximo possível do que foi a vida de seus antepassados. Precisam esquecer o que viveram, se é que isso é possível.
Outros que foram resgatados junto com o Guto tiveram mais sorte.
Chico é um cavalo parecido com o Guto e, como ele, também foi retirado de um carroceiro cruel e covarde.
Sua maior enfermidade está logo acima da cauda: uma ferida aberta, infeccionada, indicando a presença de corpo estranho, possivelmente a lasca da madeira que lhe perfurou o couro.
Ele também tem a cabeça baixa e não se atreve a olhar um humano nos olhos.
O vigor de sua juventude também ficou em um passado distante. Os anos na carroça não foram poucos e ele, assim como o Guto, não tem muito tempo.
Não tem a orelha quebrada, nem lhe faltam muitos dentes. Ainda pode ter alguma qualidade de vida.
A primeira providência seria remover a sujeira que lhe cobria os ferimentos. Só depois foi possível ver a extensão da ferida. Definitivamente aquilo não foi um acidente. Cavalos não costumam cair sentados.
Os cascos posteriores estavam “achinelados”, o que provoca muita dor nas articulações, podendo mesmo evoluir para uma severa infecção dos tendões.
Isso ocorre por terem sido excessivamente gastos no asfalto quente. Ele deve ter descido muita ladeira segurando a carroça nos cascos dianteiros. Para voltar ao normal, ele precisará de pelo menos três aparas no casco. Leva tempo mas ele voltará a pisar com segurança e sem dor.
Ao contrário do Gustavo, seus olhos ainda brilham. Ele parece saber que terá uma nova chance.
Está magro, mas nada que um pasto e bom cocho não possam restaurar. Aliás, ele também gosta de rapadura.
Alguns dias se passaram e foi possível ter uma demonstração de até onde a insanidade humana pode chegar.
O ferimento acima de sua cauda não fechava, nem mesmo com pesados antibióticos. Havia duas possibilidades: presença de corpo estranho ou de um tumor. Pra fechar o diagnóstico, foi preciso operar. Um corte de mais de 20 centímetros precisou ser feito, para investigar as razões da infecção e extrair o que estava provocando a inflamação.
O espanto foi grande, quando, de dentro do Chiquinho, foi retirada uma grande quantidade de… (vamos preferir chamar de corpo estranho).
Assim que os pedaços foram retirados, já era possível desconfiar do que se tratava, mas, mesmo assim, foi feita análise laboratorial do material, apenas para que pudéssemos nos certificar de que o diagnóstico estava correto.
Não era tumor, mas aquilo havia sido, de forma mecânica e intencional, “guardado” na carne do cavalo. Alguém usou uma faca, abriu o buraco grande o suficiente e enfiou o material carne adentro.
Melhor não tentar explicar nada.
A cirurgia correu muito bem e os antibióticos, a partir da retirada do material, passaram a fazer efeito. Em poucos dias já estava pronto para adoção. O tempo fará dele um cavalo bonito, altivo e orgulhoso de seu sangue nem tão puro.
Em outra ala, Faísca e Fumaça também foram retirados de carroceiros e também não são filhotes. Apesar disso, estavam muito bem.
Faísca é um cavalo muito dócil, apesar de tudo.
Ele também traz nas pernas as marcas profundas do arame farpado que o prendia. Na região do chanfro, os sinais deixados pelo freio, no lombo, as cicatrizes dos chicotes e fincos e, nos olhos, muita tristeza.
Fumaça também tem uma orelha quebrada pelo uso do cachimbo. Apesar disso, seus olhos têm vida. É o tipo de cavalo que ainda tem saúde pra galopar livre.
Mas isso não significa que possa ser novamente escravizado. Nenhum animal resgatado voltará a ser usado como animal de trabalho, nem mesmo para serviços leves. E isso será garantido com um controle rigoroso no pós adoção.
Na verdade, depois de tanto trabalho e esforço pra salvá-los, não é justo que caiam novamente em mãos erradas. Daí a convicção que temos de que esse anúncio jamais chegará a gente sem escrúpulos.
Às vezes, ele parece baixar o olhar, numa expressão de desânimo, mas logo retoma o equilíbrio que nunca deveria ter perdido. Olha as pessoas com desconfiança, como se esperasse sempre o pior.
Ele também traz algumas marcas e feridas dos instrumentos de tortura.
Algumas marcas o tempo vai apagar. Outras, mais profundas, ficarão para lembrar o que fizeram com ele, pra que ninguém sinta o impulso de um dia lhe colocar uma sela, ou mesmo uma manta com 10 quilos de criança em seu lombo. Definitivamente, não foi pra isso que ele foi salvo.
O Fumaça é um cavalo que precisa de espaço e vida livre. Ele dormirá ao relento e comerá capim. Se a vida permitir, ele ainda pode voltar a ser um cavalo selvagem, com força e disposição pra correr livre e disputar a liderança de um bando, mesmo sendo castrado.
Pregos e sola de borracha nunca mais farão parte de sua vida. Ferraduras nunca mais. Ele sentirá a terra firme sob seus cascos.
Ele é sociável e tornou-se amigo do Faísca. Os dois foram resgatados em condições parecidas, mas de donos diferentes. Não se conheciam, mas após o resgate, encontraram, um no outro, o apoio de que precisavam. O Faísca colocava-se ao lado do Fumaça durante a remoção das ferraduras, como se quisesse dar-lhe força e coragem pra suportar as dificuldades. Eles não se desgrudam, estão sempre juntos e chegam mesmo a dormir encostados um no outro.
ATUALIZAÇÃO: Faísca e Fumaça foram adotados juntos. Eles já estão vivendo em um paraíso. Abaixo as fotos dos dois irmãos quase siameses, na nova casa.
Pra nós, ficará a recordação dos olhos do Fumaça, logo após o resgate. Ele parecia saber que, dali pra frente, tudo seria diferente.
Quanto ao Guto, ele está muito bem. Hoje é um cavalinho feliz e muito receptivo às pessoas. Adora suspiro e bala délícia. Voltou a galopar como um alazão selvagem (pra nós, um trote, no caso dele, já é considerado um galope).
Contra todas as expectativas, o Guto foi adotado. Ele hoje está feliz em sua nova casa. Além de alimentação balanceada, ele tem direito a sobremesa com suspiro e bala delícia.
Chiquinho, o cavalinho usado em rituais de magia negra também encontrou novo dono. Ele hoje vive feliz em uma fazenda, em companhia de outro pangaré chamado Tunico.
Ele nunca terá a elegância de um cavalo selvagem. Nem terá forças pra galopar e correr livre. Mas o tempo o deixará tão belo e feliz quando seu novo amigo Tunico, também resgatado de maus-tratos.
E que você seja capaz de esquecer, amigo, tudo que te fizemos. E que sejamos perdoados.
Que esta matéria contribua de alguma forma pra melhorar a vida daqueles que ainda sofrem atrelados nas carroças.
A necessidade por encontrar bons adotantes para cavalos resgatados de maus-tratos é sempre presente. Pedimos àqueles que tiverem espaço em suas propriedades se dispuserem a receber um animal de grande porte, por favor nos enviem informações e dados de contato no e-mail abaixo.
Será muito bom o dia em que conseguirmos abolir a escravidão animal. Os cavalos são os maiores símbolos dessa escravidão.
Contato para adoção: soscavalo@gmail.com
(Em Belo Horizonte, Minas Gerais).
Comentários / Mais informações sobre o anúncio devem ser obtidas com os anunciantes, no telefone ou e-mail indicados acima.