Vítima do descaso, a Neguinha foi atropelada e não teve socorro imediato. Ficou paraplégica e, de acordo com avaliação veterinária, a lesão havia alguns dias.
Havia ainda sinais de atropelamento anterior, com feridas abertas, já infeccionadas e repletas de miíase por todo o corpo.
Ela foi encontrada se arrastando, muito ferida, e com as tetas cheias de leite. Tentava a todo custo seguir seu caminho.
Foi tentado o socorro, mas ela deixou claro que tinha pra onde voltar. Então, a solução foi deixar que seguisse até o destino e, claro, acompanhando-a de perto. Em algum lugar, uma família esperava por ela. Não era uma família humana, mas de seu próprio sangue.
A Neguinha, como foi chamada por sua salvadora, se arrastou por muitas quadras, sendo ajudada em algumas calçadas, até chegar onde estavam os filhotes. Não sabemos há quantos dias eles estavam sem se alimentar mas, por milagre, estavam vivos.
Desnutridos, anêmicos, alguns já quase sem fôlego, mas estavam vivos. A Neguinha, mais que depressa, cuidou de passar para seus filhos o sopro de vida que ainda lhe restava, deixando que sugasse suas últimas forças.
Ela parecia saber que não teria futuro. O resgate aconteceu para toda a família. A mãe foi imediatamente para uma clínica e os filhotes seguiram para um lar temporário.
Ela estava mais calma, como se soubesse que os pequenos estavam salvos.
Foram feitos todos os exames, mas seu estado era grave demais. Rompimento total da coluna e da bacia. Intestino e bexiga não funcionavam mais.
Ela precisava de intervenção para defecar e urinar, sempre sentindo muita dor.
Sem aceitar a recomendação de eutanásia, e querendo uma nova opinião, sua protetora a transferiu para outra clínica, ouvindo dos novos médicos o mesmo prognóstico. As lesões eram irreversíveis e ela estava em profundo sofrimento.
Seus olhos indicavam que não dava mais, mas ainda encontrava forças pra pedir notícias dos filhos.
Sua protetora então se aproximou dela e disse que os pequenos estavam amparados e protegidos, que teriam uma vida muito diferente da dela e que seriam felizes.
Ela entendeu. Agradeceu com uma lambida e, com o olhar mais terno que já se viu, mostrou que sabia que não voltaria a ver os filhos.
Restava apenas uma última despedida, com muitos afagos, alguns petiscos, muitas promessas e lágrimas para, ao final, autorizar a eutanásia.
Neguinha foi sepultada por sua protetora. Só quem já enterrou um amigo com as próprias mãos será capaz de entender um momento assim.
Do outro lado da cidade, desenrolava-se um novo capítulo da mesma história.
Os filhotes foram acomodados em uma casinha. Não tinha o cheiro da Neguinha, mas foi o que deu pra conseguir pra eles.
Por muitos dias eles foram alimentados na mamadeira. Estavam novinhos demais e não comiam sozinhos.
Eles cresceram fortes e saudáveis. Esta foi a melhor homenagem que poderia ser prestada à Neguinha. Seus filhos merecem viver e ser felizes.
Os adotantes vieram, exatamente como mereciam. Estão bem e seguindo o caminho que a vida reservou pra eles. Cada um deles levará no DNA a herança genética de uma criatura verdadeiramente especial, que um dia passou por aqui, e que não foi bem recebida, mas que partiu conformada, disposta a perdoar e a voltar, com esperanças de uma vida melhor.
Onde ela estiver, deve estar feliz.
Fica o consolo de saber que laços de afeto não se desfazem e que caminhos existem para se cruzarem.
Esta história teve um final feliz, que chegamos a divulgar. Mas, como humanos não trazem estrela na testa, uma falha aconteceu na escolha de um dos adotantes.
O Marley, um dos primeiros filhotes que havia sido adotado, foi devolvido, ou melhor, trocado por um filhote de raça pura. Temos muita pena desse filhotinho novo que chegou por lá. Pra pessoas assim, ele não vale pelo que é, mas pelo rótulo que ostenta. Infelizmente, pessoas assim não se afeiçoam. O pequeno passará a vida sem conhecer afeto de verdade e é um sério candidato a ser jogado na rua, quando ficar velho, quando adoecer, ou quando o pelo embolar.
O Marley chegou triste, é claro, mas não tardou muito a seguir outro caminho, este sim, cheio de afeto. Na nova casa, poderá correr e brincar, e encontrará gente disposta a lhe dar toda a trela do mundo.
Ele está feliz. Todos estão, e essa foi a melhor homenagem que a Neguinha poderia receber.
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