Quando um lote de animais é destinado à soltura, presume-se que todos estejam em condições de viverem na natureza.
Nem sempre é possível saber se são jovens ou velhos, mas isso não importa. Desde que estejam bem, terão direito a uma segunda chance.
E quando um grupo de animais chega a uma área de soltura para aclimatação, sabemos que chegaram perto demais e, se um ou outro fica pelo caminho, a frustração é grande.
É claro que, em 220 animais, podem ocorrer algumas baixas. O estresse da viagem, o histórico de maus-tratos, do cativeiro e até brigas podem colocar fim a uma história.
Quando o João chegou ao santuário, notamos que algo não estava bem. Ele talvez fosse um daqueles que ficariam pelo caminho.
Ele explorava o viveiro, mas sem arriscar grandes voos. Caminhava, ciscava e até brigava, mas não parecia saber voar.
Até aí, nada que um período de preparação não resolvesse. Ele não foi o primeiro e nem seria o último a chegar ali sem saber voar.
Não estava sozinho. Outro de sua espécie, bem mais esperto e mais disposto do que ele, estava também por ali.
Manoel foi o nome que escolhemos para um de seus irmãos.
Enquanto o Manoel se preparava, fazendo todas as atividades propostas, o João preferia continuar ali, deitado, sem muito interesse.
E assim ele passou os 30 dias previstos para a aclimatação. Neste período, pudemos observar que, nas raras vezes em que ele se arriscava a usar as asas, voava sem direção e acabava se machucando, tronbando contra qualquer coisa que estivesse à sua frente.
Percebemos então que ele não enxergava direito e que também não tinha a menor ideia de como usar as asas de forma segura.
Era velhinho e deve ter vivido tempo demais em cativeiro, talvez retirado do ninho ainda filhote.
Sentíamos angustiados por ele. Assistíamos a evolução de seu irmão, já imaginando que o João talvez não chegasse vivo ao final do período de aclimatação.
Mais que uma possibilidade, esse desfecho era quase uma certeza.
Assistimos o Manoel, seu irmão, ganhar espaço a cada dia. Ele ciscava, arrancava sementes da terra, colhia frutas diretamente das árvores e banhava-se no espelho d’água.
João também recorria à lagoinha. Bebia na fonte e até arriscava se molhar.
Mas estava distante demais do que se esperava dele. Sabíamos que, se ele não deixasse o viveiro com as próprias asas, terá que deixar nas mãos dos biólogos e veterinários do IBAMA, que talvez decidam por levá-lo de volta ao Centro de Triagem.
Infelizmente, se isso acontecer, ele estará condenado a um resto de vida em cativeiro, e não é o que desejamos pra ele. Preferíamos vê-lo morto a ter que voltar ao cativeiro.
Os dias seguiram e nenhum sinal de melhora. Manoel estava firme em seu propósito de se preparar para a vida livre, mas o João, seguia passivo, aceitando aquela semi-liberdade.
Às vezes, Manoel se aproximava do amigo, como se tentasse mostrar o caminho, mas o João não tinha mais condições para acompanhá-lo.
Foram dias angustiantes, em uma luta diária contra o tempo. Ele talvez não tivesse consciência de que seu destino seria selado em questão de dias.
A verdade é que ele já não esperava mais nada da vida.
Mas, nós sabíamos que estar ali era importante para o seu processo evolutivo. Uma vida inteira lhe foi roubada, mas ele precisaria de um território pra chamar de seu. Precisaria de um lugar pra morrer, e pra onde poder voltar.
E nas programações da vida, talvez o Manoel tenha um papel importante. Sabemos que estamos todos ligados e a vida conhece bem os caminhos.
E o nosso Joãozinho, se não tiver vida longa, que tenha a melhor que pudermos proporcionar a ele.
Os comedouros com as frutas e sementes frescas estão posicionados bem perto do chão e, se em algum momento percebermos que o acesso está difícil, nós as posicionaremos bem diante de seu bico.
Não assumimos responsabilidades por acaso e, se o gorducho João chegou às nossas mãos, é porque aqui ele tem que ficar.
Aqui vai morrer e pra cá voltará, mais forte e pronto pra cumprir as etapas que não lhe foram permitidas.
O dia da soltura chegou, sem que percebêssemos a mínima chance dele deixar sozinho o viveiro.
Naquele dia, ainda na madrugada, João foi visto em um canto coberto do viveiro, no chão, dormindo, encolhido como em todas as outras vinte e nove alvoradas, desde o dia em que aqui chegou.
O clima estava diferente e aquelas aves pareciam saber que algo especial estava pra acontecer.
Todos muito assanhados, menos o João, que continuava ali. Parecia nos mostrar que aquele dia não mudaria a vida dele.
Mas quando se pode enxergar a vida de forma mais ampla, é possível notar como tudo se encaixa. Sabíamos que aquele nosso viveiro de aclimatação era o máximo de liberdade que o nosso amigo poderia ter, mas estava muito claro que a liberdade dele estava sendo construída do lado de fora, por seu irmão.
Manoel estava pronto e, do lado de fora, cuidaria de preparar o terreno para o retorno de seu irmão.
Não o carregaria nos ombros, nem o arrastaria pra fora das telas, mas faria algo ainda melhor.
Deixou o viveiro naquele mesmo dia e, uma semana depois, voi visto em compahia de uma sabiá nativa, rondando a casa sede da fazenda, como se procurassem um lugar pra construir o ninho.
Dentro do viveiro, continuou o nosso menino, triste e, agora, quase sozinho.
Ali ele terá espaço, terra pra ciscar, sementes pra descobrir, frutas maduras servidas todos os dias, água corrente e fresquinha que vem direto da fonte e até espaço pra ensaiar pequenos voos, embora esteja claro que suas asas estão mesmo aposentadas.
Não é a liberdade que esperávamos pra ele, mas é a única que ele poderá ter.
A soltura foi concluída, depois que todos os pássaros deixaram o viveiro. Todos, menos um.
João é nosso hóspede permanente. Continuará por aqui, tendo o melhor que pudermos lhe oferecer.
Não desejamos pra ele vida longa. Queremos que ele fique por aqui só o tempo necessário para que Manoel possa constituir família, construir uma bela casa para, enfim, recebê-lo sob as asas.
É angustiante nos despedir de um animal ainda vivo, mas foi o que a vida nos trouxe. Histórias assim, talvez sirvam para que outros sabiás, que ainda vivem em cativeiro, possam ser libertados, enquanto ainda há tempo, enquanto ainda têm vida.
Para o João, a liberdade chegou tarde.
ATUALIZANDO. A história do João chegou ao fim. Ele partiu na manhã do dia 11 de dezembro de 2015, menos de 4 meses depois da abertura do viveiro. Nos últimos dias, precisava que colocássemos as frutas picadas bem diante de seu bico.
Ele quase não enxergava mais e, ainda assim, conseguia encontrar a lagoa para beber, embora um bebedouro estivesse sempre por perto.
Não foi uma morte sentida. Pelo contrário, esperávamos por ela, como encerramento de uma triste etapa de sua vida. Outras etapas virão e, se nossos mentores permitirem, ainda teremos a alegria de registrar nosso menino, começando tudo de novo, em um ninho qualquer, ali mesmo, no território que um dia oferecemos a ele.
Vá em paz amigo.
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