No dia em que chegaram ao santuário, eram quase 240 pássaros. Enquanto os biólogos e veterinários os soltavam dentro do viveiro, nós acompanhávamos os trabalhos, disparando a câmera fotográfica por todos os lados.
O primeiro passarinho a ser fotografado foi uma canarinha pardinha. Ela pousou nas telas da gaiola e ali ficou, como se reconhecesse o ambiente.
Naquele momento, ainda não sabíamos que aquela canarinha teria uma história tão triste.
Em um grupo de quase 240 pássaros, quase a metade eram canários, muitos deles pardos (jovens ainda), o que indicava que haviam sido apreendidos em poder de traficantes.
Poucos sobrevivem à triste jornada imposta pelos traficantes. Nove em cada dez morrem no transporte, em intenso sofrimento. Uma pequena parte será condenada a passar a vida em uma gaiola e, alguns poucos são os sortudos que, apreendidos pelos órgãos ambientais, acabam tendo uma segunda chance.
Aqueles que chegaram com vida ao nosso território são exatamente os sobreviventes e sortudos. Eles passaram por um centro de triagem do IBAMA e IEF e chegaram por aqui apenas para aclimatação e soltura.
Os canários mais jovens são os que têm melhores chances. Afinal, na grande maioria, eles reaprendem rápido a voar e em poucos dias estão prontos.
A readaptação deles é tão fácil que temos o registro de muitos casais reintroduzidos, e que constantemente chocam nos ninhos artificiais espalhados pela fazenda.
Quando chegam, muitos deles estão com falhas na plumagem, alguns até com ferimentos, de tanto que se debatem contra as grades das gaiolas.
O estresse é grande demais e o sofrimento maior ainda.
Nosso viveiro tem todas as condições de recebê-los bem e de prepará-los para a liberdade. Durante o período de aclimatação, registramos a evolução dos pássaros.
Flagramos os momentos que consideramos felizes.
Em quase 120 canários, era de se imaginar que não voltaríamos mais a identificar, dentre tantos, a nossa pequena Lucinha. Afinal, com tantos canários iguais, era de se esperar que no grupo, ela não fosse mais reconhecida.
Ganharia a liberdade junto com os demais e seria apenas mais uma fêmea anilhada em liberdade, pelo menos era o que esperávamos pra ela.
Registramos muitos momentos especiais:
refeições coletivas,
banhos animados e até coletivos.
Dança de acasalamento, muitas sinfonias e até brigas.
A descoberta de sabores novos, e até reuniões com pássaros de outras espécies.
Os momentos felizes se multiplicavam. Tudo parecia bem e sabíamos que aquela soltura seria mais um grande sucesso.
Enquanto os dias se passaram, os pequenos passarinhos amarelos tornavam-se mais fortes e até mais coloridos.
O treinamento foi intenso. Eles aproveitaram não só as sementes, mas também as frutas. Laranjas serra d’água, jambos e outras frutas, nativas e até exóticas.
A água que desce da montanha é a mesma que abastece os bebedouros.
Eis que chega o grande dia, aquele em que uma janela para a vida livre seria aberta. Apesar do grande número de aves, não costumamos registrar grandes revoadas.
Como de costume, as saídas são discretas e isoladas.
O viveiro de aclimatação é grande bastante para que os animais não se sintam presos. Nos primeiros instantes após a abertura da janela, entram mais pássaros do que saem.
Do lado de fora, além do banquete de todos os dias, ninhos artificiais foram espalhados, preparados para receber os pequenos. Tudo preparado e planejado com muito cuidado: A espessura da madeira para garantir equilíbrio térmico, as cores e a fixação dos ninhos em locais que garantem a camuflagem, o tamanho da abertura e até a distância da entrada para a base, suficiente para impedir a saída precoce dos filhotes.
Enfim, temos tudo para que a reintrodução seja bem sucedida, e que os animais libertados tenham condições de dar origem às próximas gerações, de aves já nascidas em liberdade.
E o resultado de tanto cuidado não poderia ser outro.
No entorno do viveiro, pelo menos quatro ninhos esperam a chegada da nova geração de canários.
Dentre os recém-libertados, outros casais se preparavam pra começar uma nova vida.
E assim que se viram em liberdade, iniciaram a preparação do ninho.
Na medida em que o viveiro se esvaziava, podíamos prestar mais atenção naqueles que ficavam. A soltura total leva uma semana, tempo necessário para que todos deixem o viveiro.
Muitos deles foram vistos em liberdade, ora dividindo comedouros com outras criaturas, ora disputando território com os de sua própria espécie.
Uma semana depois, o viveiro estava vazio, ou quase isso. Do lado de fora, a vida explodia em uma mistura de cores, cantos e histórias. Cada um deles levava nas asas nossa esperança de que estejamos mesmo construindo um novo mundo.
Infelizmente, em cada grande soltura, alguns ficam pelo caminho e partem durante a aclimatação, ou porque estavam muito debilitados, ou porque os anos de cativeiro tiraram deles a vontade de tentar.
O tempo da soltura havia chegado ao fim, mas alguns se recusavam a sair.
E logo reconhecemos aquela mesma canarinha que fotografamos no dia em que chegaram. A mesma asa caída, que num primeiro momento acreditamos ser apenas estresse, e a incapacidade de deixar o chão voando.
Se lhe faltavam asas, ela usava muito bem as pernas, o que a permitia pular, empoleirar-se nos galhos mais baixos e, a partir deles, atingir os galhos mais altos da amoreira e das outras árvores do viveiro.
Chegava fácil aos comedouros, à lagoa, mas jamais alcançaria a janela, e nem teria condições de sobreviver do lado de fora das telas.
A ampliação das fotos deixava clara a má-formação das asas. Não sabemos se ela nasceu assim, em cativeiro, ou se foi gravemente ferida durante o manejo pelos traficantes.
Nada pode ser mais angustiante que ver aquela canarinha tentando voar, caindo e pulando. Não é verdade que ela tenha evoluído pra viver em uma gaiola, usando apenas as pernas pra pular de um poleiro a outro.
Se essa é a realidade dela, foi por culpa da covardia humana. Não era pra ser assim.
Queríamos dar a ela a chance de uma vida mais digna. Infelizmente, Lucinha será moradora permanente de nosso viveiro. Ficará por aqui, até quando a vida achar que ela mereça ficar.
De dentro das telas, ela poderá ver a vida que segue no entorno. Os outros 120 canários estão por ali, em pura algazarra, da qual ela nunca poderá participar.
Talvez, em uma próxima soltura, venha um machinho também incapaz de voar, e possa com ela formar uma família. Afinal, a vida tem seus métodos para que tudo valha a pena.
Lucinha não ganhará a liberdade, mas poderá ser mãe e ver seus filhos se tornarem canários livres. Talvez assim ela possa se sentir realizada e cumprir a etapa de uma grande jornada evolutiva que Deus preparou pra ela.
Estamos felizes por tê-la por aqui. Não era o que queríamos pra ela, mas temos condições de lhe proporcionar a melhor vida possível.
E que crueldades assim um dia deixem de existir.
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