Infelizmente, uma história que se repete. Animais de tração não merecem a atenção do poder público. Aliás, nada que não tenha título de eleitor merece a atenção do poder público.
Um dia, alguém postou na rede uma denúncia sobre uma égua maltratada no Bairro Estrela Dalva, que vivia puxando carroça na região. Segundo a denúncia, a égua estava visivelmente debilitada, com uma ferida grave nos olhos e várias outras pelo corpo.
Para investigar o caso, foi armada uma operação conjunta entre o NFDA Núcleo Fauna de Defesa Animal, a Polícia Ambiental Militar, a Delegacia do Meio Ambiente e o CCZ de Belo Horizonte, na qual se apurou a consistência da denúncia, sendo o animal apreendido (resgatado, na linguagem dos protetores) e levado a um hospital veterinário.
De fato, ela apresentava feridas pelo corpo, provenientes do excesso de peso colocado na carroça, tinha uma grave infecção nos olhos e feridas nos cascos. Até aí, nada que não pudesse ser tratado.
Pior que tudo isso, as marcas de deformação óssea indicavam que a ela foi imposto o peso das carroças, quando ainda era jovem, antes mesmo que seus ossos tivessem a firmeza necessária para suportar a carga. Já nasceu escrava e experimentou as chibatas e o peso do trabalho forçado enquanto ainda era uma potra. Não lhe foi dado tempo pra crescer e se fortalecer.
Ela já tem entre 15 e 20 anos de idade e sofreu toda sorte de agressões e maus-tratos.
Seus olhos lacrimejavam em razão da infecção, mas poderia ser também em razão dos anos de sofrimento.
Não se podia dizer que ela é dócil. Passiva e submissa talvez sejam definições mais adequadas. Ainda assim, esboçou resistência na hora de ser colocada no caminhão que a transportaria, indicando que não confiava em humanos. Afinal, quais motivos ela teria para gostar de nossa espécie?
Quando foi vista pela primeira vez, ela comia uma melancia, pois era alimentada com restos de sacolão. Por isso, seu protetor resolveu dar a ela o nome provisório de Magali.
Já no hospital veterinário, se mostrava mais calma, embora ainda arredia.
Seus dentes estavam deformados, o que a impedia de mastigar. A desnutrição era evidente. Engolia pedaços grandes de alimento, que passavam por seu estômago e intestinos sem serem completamente digeridos.
Os dentes foram grosados, permitindo a ela o básico pra se manter viva.
Alguns dias de internação/tratamento e Magali recebia alta médica. Estava longe de ser uma eguinha bem cuidada. É certo que ela ganhará peso, mas não terá jamais a elegância dos cavalos selvagens. Roubaram-lhe a juventude, a beleza, a alegria, a altivez. Roubaram-lhe a vida. Quebraram-lhe a crina.
Não sabemos se ela esquecerá a vida que teve até aqui. Afinal, foram 20 anos de condicionamento.
Faltava agora encontrar um destino pra ela. Precisava de uma justa e tranquila aposentadoria, com pasto, espaço, sombras e sossego. O lugar existia e parecia estar esperando por ela.
Foi embarcada e seguiu viagem, ainda assustada e abatida. Mas seu destino estava muito longe da civilização, em um lugar de difícil acesso. Precisou ser desembarcada pelo menos um quilômetro antes de seu destino, para seguir viagem a pé.
No desembarque, conheceu aquele que viria a ser o seu tratador, ou melhor, cuidador.
No caminho, montanha acima, ela buscava qualquer coisa verde. Era visível a fome e a vontade de experimentar capim novo, colhido na hora. Se ela soubesse o pasto que a esperava no alto da montanha, não perderia tempo com a grama do caminho.
Assim que chegou ao destino, foi recepcionada pelo Casco, um touro que gosta de lamber as pessoas. Ele nasceu no santuário e nunca deixou aquelas terras. Conhece cada pedaço daquele chão.
E, como se quisesse mostrar à Magali que por ali os humanos são confiáveis, decidiu fazer o que mais gosta: lamber o seu tratador. Aliás, se deixar, ele faz isso o dia inteiro. Mas, em santuários, os tratadores são de açúcar.
Depois dessa recepção, recebeu ela os primeiros cuidados da Alícia, sua adotante, que já se comprometeu a reservar metade de sua mesada pra comprar petiscos para a Magali. Ela gosta de cenoura, maçã, milho verde e até melancia. Muito apropriado o nome que lhe foi dado e que será mantido.
Mas, de crianças, ela agora receberá apenas os petiscos, mesmo que tenha que dividi-los com um touro intrometido. Não sentirá mais o peso das carroças, de crianças, de nada.
Talvez sinta o peso da vida, da idade, mas, desse, não podemos livrá-la.
Um piquete especial todo formado em Tanzânia lhe foi oferecido. Ela começou a pastar e não parou enquanto estivemos por lá.
Uma siriema resolveu aparecer, pra mostrar a ela que a área estava protegida das cobras. Claro que os perigos existem, mas esperamos contar a história da Magali nos próximos anos. Talvez ela ainda tenha alguns anos de vida, quem sabe mais uns 10.
Não importa o tempo que ainda lhe resta. Importa a qualidade da vida que terá.
Não pôde conhecer o bando de cavalos selvagens que vagam por aquelas terras (Tieta, Bolinha e Estrelinha), porque estavam muito distantes quando de nossa chegada.
Como equinos costumam estranhar forasteiros, ela será mantida em piquete separado, até que a turma se acostume com sua presença. Assim que os sinais de agressividade se forem, será colocada junto aos demais, quando então poderá experimentar uma vida que talvez conhecesse apenas em sonhos.
Na despedida, uma última olhada para a Alícia, mostrando que sabia quem a havia adotado. Afinal, gratidão e reconhecimento não são sentimentos exclusivos humanos.
Nos dias que se seguiram, ela foi desparasitada e fez as unhas, tirando as ferraduras de borracha de pneu, pregadas com prego de construção. Talvez pela primeira vez, sentiu a terra sob seus cascos. Tem mostrado gostar da liberdade, coisa que não conhecia.
Sua adaptação levou aproximadamente 30 dias, tempo necessário para que fosse ela aceita no bando que vaga por aquelas terras. Mas enfim, superada a fase de adaptação, eis a Magali, junto com sua nova turma.
Em mais alguns dias, já podíamos flagrar a Magali de cabeça erguida, orgulhosa de sua linhagem. Ainda não flagramos um galope, mas já conseguimos vê-la trotando pelo pasto. Também já se arrisca a dar alguns coices e pinotes.
Aos poucos, ela descobrirá o cavalo selvagem que ainda traz na alma.
Esperamos incentivar sitiantes e fazendeiros a olhar estes animais com outros olhos.
Aposentar um pangaré não custa nada e faz muito bem à alma.
Um resgate de Franklin Oliveira. NFDA Núcleo Fauna de Defesa Animal.
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