Pois é. Fazer o quê né? Minha história é a seguinte.

Eu sou um cãozinho muito esperto, gosto muito de humanos, tinha uma família grande, com pessoas que cuidavam muito bem de mim. Tomava banhos regulares, usava medicamentos antiparasitas. Até coleira Scalibor, pra me proteger da Leishmaniose eu tinha.

Também sou meio narcisista. Modéstia a parte, sou lindo, tenho pelo macio, sou dócil. Enfim, eu sou tudo o que de melhor a natureza conseguiu criar. E com tantas qualidades, achei que deveria transmitir meus genes. Queria melhorar este planeta, espalhando o maior número possível de descendentes. O mundo será melhor, quanto maior o número de cãezinhos como eu por aí.

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Essa ladainha toda é pra contar como me perdi. Estava tranquilo na porta de minha casa, olhando o movimento da rua, quando vi passar uma cadelinha sem raça, seguida por vários outros cães.

Ela não era essa lindeza toda, mas mesmo assim, achei que aquela era a oportunidade que esperava. Ela estava no cio, é claro.

Sem pensar nas consequências, decidi seguir aquela matilha, deixando claro que eu era o lobo alfa, e que a mim cabia o direito de acasalar. Esqueci de contar no início que também sou muito corajoso.

O problema era que todos os outros machos pensavam a mesma coisa. Todos se julgavam líderes, e aí o conflito foi inevitável. Eu era o mais bonitinho, o mais limpinho, mas eles eram maiores e mais fortes. Aí o bicho pegou pra mim. Fui ferido na orelha e na pata traseira. Doeu aquilo.

Nestas horas, a minha estirpe nada adiantou. Eu me feri gravemente, mas, mesmo assim, não desisti, e continuei naquela empreitada. Um lobo alfa como eu, diante de uma fêmea no cio, não sente fome, sede, dor, frio, medo, nem se preocupa em guardar o caminho de volta.

Um dia, como por encanto, o cio de nossa musa acabou. Olhei em volta e não vi nada que eu conhecesse. Não sabia mais onde estava, nem como encontrar o caminho de volta. Se arrependimento matasse.

Pior que o arrependimento, a rudeza das ruas pode matar, ferir e impor um sofrimento ao qual pensava que estivesse imune.

Quando fui visto pela primeira vez, enquanto ainda perseguia aquela matilha, estava limpinho, com o pelo brilhante, e usava uma coleira Scalibor no pescoço.

Um mês depois, eu já estava no estado que as fotos mostram. Muito machucado, faminto, sedento, abatido, já entrando em desespero. Procurava comida como louco, sem a menor noção de onde encontrar. Comia tudo o que conseguisse mastigar. Cheguei a disputar migalhas com pombos. Que decadência!

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Faria qualquer coisa pra encontrar meus donos. Tenho certeza de que eles estão também procurando por mim. A ferida na orelha infeccionou e estava repleta de larvas, que me comiam vivo. Não achei que fosse possível sentir tanta dor. Já me conformava com o pior, como solução pra me livrar daquela dor insuportável.

Já havia perdido as esperanças, e pensava que terminaria minha história em estado de intenso sofrimento. Algumas pessoas já me evitavam, por causa do cheiro que emanava de minhas feridas.

Mas aí, tudo mudou. Cruzei o caminho de uma protetora de animais. Sei lá quem são estas pessoas, mas ela se aproximou de mim, me ofereceu comida, água e colo. Nem se importou com o meu cheiro, nem com a sujeira que eu faria em suas roupas.

O resto da minha história, a vida ainda vai escrever. Fui tratado e já estou novamente em ótima forma. Por hora, só consigo torcer pra que encontrem meus donos.

Mas se eles não forem achados, quem sabe encontro uma outra família que me ampare e me dê a segurança de uma casa. Mas, desta vez, que tenha um muro alto, ou uma grade pela qual eu não possa passar.

Afinal, há muito já perdi a capacidade de me virar sozinho. Preciso ser protegido de mim mesmo, pra não fugir de novo.

Posso ter me abatido, mas não perdi a consciência do cão especial que sou. Sou pequeno a médio, pesando cerca de 12 quilos. Tenho pelo muito bonito e macio. Sou carinhoso, brincalhão e fico muito bem em casa, sem fazer bagunça ou choramingar.

Serei entregue ao adotante vacinado, vermifugado e em boa forma. Nem vou me incomodar se me derem banho e me jogarem perfume. Faço qualquer coisa pra agradar.

Sou um cachorro festeiro e adoro colo. E ainda bem que gosto de colo, porque as pessoas adoram me dar colo. Ser bonitão tem as suas vantagens. Mas eu sei retribuir carinho com carinho. Entendo de gente e sei do que as pessoas gostam.

A verdade é que aquele que for escolhido pra me adotar vai tirar a sorte grande. Tenho muitas outras qualidades, mas nem é bom ficar alardeando demais, pra não haver briga de adotantes pra me disputar.

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Mas aí, o improvável acontece. Talvez pela minha falta de modéstia, encalhei.

Putz. Por 16 meses tive que esperar pela adoção, confinado, me desentendendo com uma galera aí. Minha protetora já estava querendo trocar meu nome e escrever outra matéria. “Zé. O Humilde rejeitado” talvez fosse um bom título. Não teria nada a ver comigo mas, tava valendo tudo.

Mas essa demora toda tinha um motivo. É que eu sou tão especial que tinha mesmo que esperar o tempo que fosse preciso, pra merecer alguém tão especial quanto eu.

Vou viver dentro de casa com direito a passear no sítio aos finais de semana. Tá bom ou querem mais? Aguardem que meu superdono ainda vai mandar umas fotos pra mostrar a vida que estou levando.

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Um resgate de Eliana Malta.

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