Quando estivemos pela primeira vez na casa de D. Tereza, encontramos muitos casos de extrema gravidade: animais cegos, paraplégicos, velhos, muito doentes, sem dentes, arredios, assustados e tristes.
A superlotação era absurda. Com 130 cães ocupando o mesmo espaço, nenhum deles tinha o mínimo de qualidade de vida.
Tristeza era o que mais se via. Como de costume, costumamos focar nos casos mais graves, com o intuito de retirar de lá aqueles mais sofridos. Era preciso uma força tarefa inicial mais drástica. Muitos deles não teria muito tempo pra esperar.
Assim foi feito e muitos daqueles cãezinhos cegos, velhinhos, sem dentes, doentes e assustados tiveram uma chance.
Eram tantos casos assim que alguns, nem chegamos a conhecer na primeira visita. Havia animais que permaneciam 24 do dia escondidos debaixo das camas, outros não se apresentavam e isso fazia com que muitos casos só chegassem ao nosso conhecimento depois da terceira ou quarta visita.
Suzi foi uma dessas. Só a conhecemos depois da terceira ou quarta visita. Ela estava, literalmente, desnorteada, no centro da sala, sendo pisoteada pelos cães maiores.
Depois, refugiava-se em um dos vãos do armário de alvenaria, que na verdade é um poleiro de gatos.
Quando perguntamos a D. Tereza sobre ela, nos foi explicado que ela era velha, cega e surda, mas que tinha uma dona.
O susto foi grande e achamos que precisávamos aprofundar. Quem era essa dona e o que aquela cadelinha estava fazendo ali?
Segundo D. Tereza, a “dona” havia resgatado a Suzi muito debilitada, pagou todos os tratamentos, com cirurgias e tudo que ela precisou, mas como a outra cadelinha da casa não a aceitou, ela foi deixada ali, aos cuidados de D. Tereza, que esclareceu que a tal tutora pagava todas as suas contas, garantindo ração, banho, tosa, vacinas e tudo.
Ainda não sabemos o que é esse “tudo” mencionado por D. Tereza, mas a ração deve ser a mesma que estava em um canto da sala, e que a pequena Suzi disputava com rosnados com o Joli, outro cãozinho também cego.
As tosas impedem o desconforto de um pelo embolado, mas os banhos apenas a mantêm limpa no trajeto da clínica para a casa, já que lá todos os animais têm um cheiro insuportável de urina velha. Mesmo tomando banho, minutos depois de ter chegado, ela já estava novamente suja e fedida.
Sua pele apresentava sinais de assaduras generalizadas.
Flagramos também situações angustiantes, em que ela se assustava com as brigas que aconteciam ao seu lado e chegava a desmaiar, caindo no chão da sala e sendo pisoteada pelos outros cães. A cena parecia ataque convulsivo.
Perguntei se essa tutora já havia entrado na casa e a resposta foi negativa.
Perguntei também há quanto tempo a Suzi estava lá, e a resposta que recebi foi um tapa na cara: SEIS ANOS.
A revolta que senti foi tamanha que não consigo mensurar. Fiquei imaginando o que deve ter sido a vida daquela cadelinha, que deveria estar dormindo na cama com os donos.
Não é exagero afirmar que ela vive em agonia. Antes não tivesse sido resgatada, antes tivesse morrido nas ruas. A cena daquela menina parada no chão da sala, tensa e rosnando até pro vento que traz o cheiro da matilha, é angustiante demais. Ela parece mais um zumbi, uma morta viva.
Com todo respeito às boas intenções de D. Tereza, mas isso não é e nunca foi proteção animal. Prefiro não nomear.
E isso vale também para quem a resgatou e a deixou ali por 6 longos anos. Agora não há muito mais a se fazer. O que fizeram, foi garantir a esta cadelinha uma vida inteira de agonia e sofrimento.
Com D. Tereza, temos um combinado, de que não mediremos palavras pra ajudar os animais. Mesmo sem ter acesso à internet, ela saberá o que estamos publicamos, pois vamos imprimir a matéria e levar pra ela, como fizemos desde o início.
Ela sabe que é condição pra assumirmos um caso assim, termos a liberdade de sermos transparentes e mostrar a realidade. Nosso foco será ajudar tanto os animais quanto ela própria, e faremos o que for preciso, mesmo que precisemos ser duros. Que fique claro que temos o apoio e a confiança de D. Tereza, que vem se desdobrando pra fazer a parte que lhe cabe. Aceita e realiza com disposição cada tarefa que lhe atribuímos.
A culpa da situação ter chegado a este extremo não é de D. Tereza, porque os canalhas continuam deixando animais amarrados em sua porta ou arremessando-os pelo alto do portão.
No entanto, D. Tereza precisa aceitar que sua casa, há muitos anos, deixou de ser um lugar acolhedor. Há muito se tornou um campo de tortura, um lugar de sofrimento e angústia. Claro que alguns animais parecem felizes ali, mas são apenas alguns poucos.
Já à “protetora” que resgatou a Suzi, que a deixou naquele lugar por longos SEIS ANOS, e que aceitou nos entregá-la depois de muita insistência, é certo que vai chorar quando ler isso.
Proteger animais não é recolher e entregar no primeiro depósito pra se livrar do problema. Proteger é levar pra casa, dar colo, pagar as contas. Se precisar deixar em um abrigo, que possa acompanhar, dar suporte permanente e não descansar até que o animal esteja encaminhado e feliz.
O resgate da Suzi foi um desgaste. Com D. Tereza eu já havia insistido, e ela sempre alegando que não poderia nos entregá-la sem o consentimento da “dona”. (Até então, nem sequer sabíamos se essa dona existia).
Em uma manhã de domingo, quando lá estivemos, encontramos a Suzi acuada, chorando baixinho no mesmo vão do armário da sala. Parecia sentir dor.
Insisti novamente para levá-la, deparando com a negativa firme de que, sem o consentimento da dona, não poderíamos levá-la.
Aquela só não foi a “gota d’água” porque o balde já havia derramado fazia tempo. Naquele dia, pela primeira vez, a Suzi olhou em minha direção e me permitiu registrar seu olhar. E ali havia medo, tristeza, anos de sofrimento e, pra quem puder ver, um pedido de ajuda.
A Suzi é cega e não olhava pra mim. Outros protetores estavam ali e eles têm meios de fazer com que uma cadelinha cega possa olhar em direção às lentes de uma câmera pronta pra disparar. Ainda não tinha visto nada mais triste e angustiante.
Pedi a D. Tereza que ligasse para a tal tutora naquela hora. Eu estava mesmo disposto a encerrar os trabalhos se não conseguisse retirar a Suzi dali.
Conversei com a tutora, cuja identidade ficará preservada por razões óbvias. Não é nosso propósito expor ou agredir ninguém. Cada um tem o seu momento pra entender certas coisas. Mas, doa a quem doer, a realidade precisava ser mostrada, pelo bem da Suzi.
Temos uma cadelinha velha, com poucos dentes, cega, surda e doente pra doar. Precisamos encontrar pra ela alguém verdadeiramente especial. E não será medindo palavras que vamos conseguir isso.
Por telefone mesmo, expliquei com detalhes o que era aquele lugar e como a cadelinha estava vivendo. Com muito custo, ela concordou em nos entregar a Suzi, com a condição de que pudesse acompanhar o trabalho que viéssemos a fazer.
Expliquei que ela poderia acompanhar pelo site, que prepararíamos uma matéria especial pra contar a história da Suzi e que ela teria a oportunidade de conhecer também a realidade da vida que proporcionou à sua resgatada até aquele momento.
Da casa de D. Tereza, a pequena Suzi foi direto para a Vet Master, onde ficou internada por alguns dias. Fez vários exames e teve alta médica. Mesmo na clínica, ela parecia aliviada.
Ela ficou internada por 5 dias e recebeu alta médica. Os exames mostraram o que já se podia esperar. Leishmaniose era o mínimo. O hemograma acusou uma severa infecção. A Suzi estava morrendo, sentindo dor e, pior que tudo isso, resignada.
Da clínica, foi levada para um lar temporário, levando na mala um coquetel de medicamentos. Ela agora está dormindo em uma caminha quente, seca, toma banhos regulares e se mantém limpa por muito tempo. Terá agora uma longa batalha pela frente. Passará por alguns tratamentos, inclusive para a leishmaniose.
O caso da Suzi foi assumido por uma protetora que prefere não se identificar, mas garantirá à pequenina lobinha tudo o que de melhor ela merecer.
Não esperamos que ela tenha vida longa. Infelizmente, vida longa ela já teve, e foi a pior possível. O que ela precisa agora é ter um resto de vida digna.
Na casa onde está, ela continua tendo contato com outros animais, mas este não é o problema. Ela é sociável e não se importa com a presença de outros cães.
Agora ela pode se locomover. Já passeia pela casa, interage bem com as crianças e até já ensaia algumas brincadeiras. A vida, de repente, ficou mais leve.
Não tem mais a mesma agilidade, porque a idade não ajuda. Ela caminha, mas seu andar ainda é tímido e descoordenado. Foi tempo demais tentando sobreviver em ambiente hostil.
Na primeira visita que fiz a ela, depois da alta médica, me coloquei a certa distância pra tentar registrar alguns de seus momentos.
Chamei por ela, até que alguém me lembrou que ela é cega e surda, e que não adiantaria chamar.
Mas aí, para a minha surpresa, aconteceu algo que nunca mais vou conseguir esquecer. Ela atendeu ao meu chamado e veio até mim. Nunca vou saber se o que a atraiu foi o cheiro ou a energia.
Ela se aproximou e, feito um gato, começou a se esfregar, pedindo carinho.
Em seguida, veio a Suzi para meu colo, se esfregando. Eu ainda não havia tido muito contato com ela. Até o dia do resgate, ela ainda não tinha sentido o toque de minhas mãos, não conhecia meus afagos.
Naquele momento, entendi o quão especial é aquela menina. Minha revolta ficou ainda maior, por pensar na vida que ela não teve.
E as demonstrações de afeto continuaram. Com uma mão operando a câmera, não dava pra abraça-la como ela merecia e parecia pedir.
Depois do fim das fotos, pude dar o que ela precisava, mas esta parte Suzi, vai ficar a cargo de seus futuros donos. Ainda não sabemos quem são, mas alguém vai ver suas fotos e vai entender o que precisa ser entendido.
Na despedida, ela me “olhava”. Parecia sentir que eu me afastava. Hoje a Suzi tem colo e afeto no lar temporário e, se vier a morrer ali, já terá sido um final de vida mais digno.
Infelizmente, ainda não sabemos se ela vai sobreviver aos tratamentos que estão por vir. Sua saúde é frágil e os tratamentos serão pesados e sofridos.
Proporcioná-la o melhor tratamento é tudo o que se pode fazer por ela. E ela tem agora uma protetora que não vai poupar esforços.
Esta história foi das mais pesadas que já publicamos. Quando me tornei voluntário no Projeto O Lobo Alfa, eu sabia o que era tudo aquilo. Compreendia os princípios e os objetivos das ações, mas não imaginava que viveria angústias assim. Se conseguirmos sensibilizar alguém e ela tiver a sorte de uma adoção especial, será uma grande vitória, mas nada vai apagar os anos de sofrimento que já se foram.
E quantos outros continuam vivendo em agonia, abandonados nos fundos de um canil, sem afagos, sem cuidados, presos em correntes ou coisas ainda piores?
Até mesmo pra encontrar disposição pra continuar, preciso acreditar que o alcance de uma história como a da Suzi vai muito além da vida dela.
Que outros não precisem passar por tudo que a Suzi passou. Que um dia sejamos capazes de evoluir e entender a responsabilidade que temos com os animais, que o estágio evolutivo de cada espécie seja respeitado, que seus instintos não sejam extirpados, que sua liberdade não seja retirada e que cada vida seja preservada e valorizada.
Sua sorte está lançada, amiga. E com ela, a de toda a humanidade, que não tem mais a eternidade pra crescer e evoluir.
A adoção veio em uma manhã de segunda-feira. Alguém viu o anúncio e se encantou. Na verdade, se encantar não seria bem a definição. Alguém viu e decidiu transformar aquele restinho de vida que sobrou.
Lembrar da Suzi naquele lugar, e imaginar que ela viveu ali por 6 anos, nos enche de angústia. Por todas as transformações que já assistimos, é claro que ela ainda pode ser feliz, ainda pode aprender a brincar, mesmo que discretamente.
A verdade é que foi tudo errado. A vida dela tinha outro propósito. Ela evoluiu e nasceu pra viver no colo, pra dividir a cama com os donos, pra aprender nossa linguagem e entender cada palavra. Tudo isso foi tirado dela.
Só nos resta rezar para que ela viva muito, pra aproveitar cada minuto dessa nova chance que ganhou da vida.
E se alguém acha que histórias assim não podem ser transformadas, que não dá mais tempo, eis o desfecho. Karina Junqueira é o nome de sua salvadora.
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