Em dia de expedição, todos levantam cedo e correm pra ocupar seus lugares no carro.
Naquele dia, Chicolico estava junto. Afinal, a festa era pra ele. Aquele passeio era para comemorar o exame negativo para leishmaniose, e também para marcar sua despedida.
Afinal, com todas as vacinas em dia, castrado e pronto pra adoção, a estada do menino em nossa casa estava com os dias contados, pelo menos era o que esperávamos.
No meio do caminho, na altura do quilômetro 530 da Rodovia Fernão Dias, no centro da pista, avisto de longe uma coisinha preta desnorteada, andando sem rumo e se assustando com o barulho de cada carreta que lhe sacudia o pelo.
Só pra esclarecer, a foto acima retrata o momento em que a avistei, mas é uma montagem. Naquela situação, não dava pra pensar em fotos.
Parei o carro no acostamento, tranquei os 5 que estavam comigo, esperei o trânsito de carretas diminuir e chamei por ela, com medo que ela tentasse correr. Não havia pra onde correr, senão para debaixo das rodas de um caminhão.
Ela me olhou e posicionou o rabinho entre as pernas, o que não era um bom sinal. Tudo que não poderia acontecer é ela sentir medo naquele momento.
Sentei no asfalto próximo ao acostamento e chamei por ela, que começou a atravessar a pista em minha direção, andando mais lentamente do que eu desejava. Mais uma fila de carretas se aproximava.
Assim que chegou há um metro de distância, eu estendi as mãos e ela se aproximou pra cheirar, assustada e com o rabinho entre as pernas. Aceitou um afago no queixo, por tempo suficiente para que eu agarrasse uma coleira de couro que ela trazia no pescoço.
Já dentro do carro, eu a acomodei no banco do carona, dividindo a caminha com a Duda.
No banco de trás, a lotação estava esgotada, com Pintada, Estopa, Hanna e Chicolico. Eu precisava dela bem perto de mim, pra controlar eventual desavença.
Mas, fugindo à regra, a Duda, naquele dia, não demonstrou ciúmes. Ficou me olhando, como se me cobrasse uma satisfação.
Tudo aconteceu na ida. Eu não tinha como voltar para deixá-la em uma clínica. A solução foi seguir viagem. Ao invés de uma expedição de despedida, teríamos uma festa de boas vindas.
A primeira providência, no desembarque, foi oferecer comida e água. Mesmo com todo o pelo embolado, era possível sentir seus ossos. No entanto, ela não estava faminta, estava desnutrida.
Depois, eu precisei confiar na força da matilha. Ela tinha acabado de ser resgatada e poderia estar ainda assustada. Depois de comer, eu a soltei em área aberta, confiando que ela se manteria próxima aos de sua espécie.
E não me enganei. Naquele momento, dei a ela o nome de Vick, uma abreviação de Victória.
Pra minha alegria, ela não apenas seguia a matilha, como me procurava todo o tempo, como se não quisesse me perder de vista.
Claro que fiz muita festa com ela e dei muito carinho. Afinal, tínhamos apenas alguns segundos pra criar um vínculo de confiança e amizade.
O Chicolico foi o primeiro a propor a ela algumas brincadeiras. A pequenina Vick estava fraca demais pra isso.
Mesmo assim, aceitou fazer parte de nossa turma. Passou a nos seguir e participar de todas as atividades propostas. Fraca ou não, mais importante que ganhar peso, naquele momento, seria estreitar os vínculos.
Em minutos, Vick já estava à vontade. Parecia conhecer aquele território.
Observava com atenção os passos dos novos amigos, querendo entender as regras do território, embora ali não haja muitas regras.
Ali somos todos livres.
A Vick estava cansada, muito cansada. Nem a agitação daquele nosso passeio a impediu de se empoleirar em uma cadeira e dormir.
Deixei ela descansar, mantendo toda a turma por perto. Uma hora de sono foi suficiente. Ela acordou mais animada e parecia ter gostado dos novos amigos.
As longas caminhadas continuaram dia afora.
A Vick mostrou também que o ambiente rural não lhe era tão estranho.
A coragem de Pintada e Duda pra se aventurarem em águas profundas foi acompanhada de perto, tanto por ela quanto pelo Chicolico.
E as longas caminhadas também foram muito apreciadas. Nem mesmo as folhas secas que grudavam em seu pelo já embolado incomodavam.
No fim do dia, nossa Vick estava feliz, feliz por ter nos encontrado, por ter feito amigos. E eu, agradecido por tê-la encontrado e por conseguir resgatá-la sem um único arranhão.
Será uma festa ter você em nossa casa, Vick. Uma alegria, que só entendem aqueles que fizeram a opção de proteger animais.
A viagem de volta foi longa. Chegando aqui, uma faxina esperava por ela.
Metade do peso foi retirado. Não sobrou muita coisa, mas dava pra ver que tinha conserto. Como não estou procurando emprego de tosador, está tudo certo. Era domingo e não tinha um só Pet Shop que pudesse atendê-la.
Então, foi o que deu pra fazer.
A Vick ficou quietinha, sem esboçar reação. A cada pedaço de pelo que saía, mais ela se acalmava. O resultado daquele serviço lhe trazia sensação de bem estar.
Nossa menina estava feliz, apesar de tudo. Fiquei tentando imaginar como teria chegado ali, de onde teria vindo. Não havia casas ou sítios por perto. Talvez tivesse sido jogada na estrada, talvez tivesse saído de alguma comunidade próxima à Rodovia e andado por quilômetros pelo canteiro central.
Qualquer que fosse a hipótese, ela não estava perto de casa.
A alegria e a rápida adaptação ao nosso território indicavam que ela não tinha de quem, nem de onde sentir saudade.
No dia seguinte, consulta médica, exames, banho e mais tosa, dessa vez por um profissional.
E aí surgiram alguns sinais verdadeiramente tristes. As tetinhas inchadas e com leite, já empedrado. Ao exame clínico, não havia fetos, mas a prudência recomendava exames mais aprofundados.
Um ultrasson indicou parto recente, há 40 dias.
Ela não era uma cadelinha que sobreviveria se tivesse parido no meio do mato. Também não se manteria viva por muito tempo, andando naquela rodovia.
As tetas muito inchadas e empedradas indicavam que há dias nenhum lobinho mamava ali. Possivelmente, eles não sobreviveram.
Ela estava à vontade em nossa casa e parecia feliz. Não sentia saudade ou falta de nada, nem mesmo dos filhotes. O luto aconteceu antes do resgate.
Estávamos convictos de que, onde quer que tenham nascido, eles não sobreviveram.
Vick era uma lobinha que pesava apenas 3,5 quilos quando a encontramos e, em apenas 4 dias, já tinha chegado aos incríveis 4 quilos, suficientes para esconder as costelas e dar a ela a silhueta de uma lobinha saudável e cheia de vida.
A interação com nossa matilha foi boa, mas elas se conheceram durante uma expedição e, nas festas, todos são legais.
O Chicolico era o mais interessado.
Os exames foram os melhores possíveis. Iniciou a vacinação completa. Ficou por aqui tempo necessário para que recebesse as três doses da óctupla, mais três doses da Leishtec, mais a imunização contra gripe.
Também passou por uma cirurgia de castração, da qual já se recuperou totalmente. Chegou fácil aos 5 quilos e meio e parecia ter sido criada em berço de ouro, desde o nascimento.
Ela é uma cadelinha jovem, de no máximo 1 ano de vida, muito agitada e brincalhona. Passou muita fome, pois ainda defende a comida, mas já está aprendendo que a fome agora é passado e que não vai mais faltar comida.
A adoção demorou, mas chegou com tudo que tinha direito. Foi recebida de braços abertos por Clara e Felipe, e com dentes à mostra pela Velinha, mas nada que o tempo e a paciência dos pais não ajustasse.
O medo do início deu lugar à confiança, na medida em que percebeu que novos colos lhe recebiam bem.
O ciúmes da Belinha logo se dissipou, e nós também pudemos relaxar, por saber que ali não faltaria colo pra nossa pretinha, e nem seria preciso disputá-lo. Também não faltariam amigos.
Felipe e Clara moram próximo à Barragem do Santa Lúcia, lugar de pelo menos três passeios diários.
Os amigos são muitos e de todas as cores e credos. E que você seja feliz, Vick. Sempre que passarmos por aquela rodovia, será impossível não nos lembrar daquela coisinha preta no meio do asfalto. Sentiremos saudade, mas sabemos que você está melhor agora.
Na nossa casa, seu lugar será rapidamente ocupado por outro lobinho necessitado de ajuda, mas da nossa história, você nunca vai sair.
Obrigado aos amigos Clara e Felipe, pela acolhida de nossa guerreirinha.
Comentários / Mais informações sobre o anúncio devem ser obtidas com os anunciantes, no telefone ou e-mail indicados acima.