Era uma vez um amigo bem grande. Ele foi encontrado mastigando papel e arrancando o pouco de verde que crescia entre as pedras fincadas da rua, um lugar que ele conhecia muito bem.
A sede era grande e, assim que lhe oferecemos um balde de água, ele bebeu até a última gota, sinalizando que queria mais. Um segundo e terceiro baldes foram oferecidos e ele só parou na metade do terceiro.
As marcas pelo corpo davam notícias das atrocidades vividas. Com idade estimada de uns 15 anos, estava claro que ele passou a vida atrelado a uma carroça, lascando o casco nas pedras fincadas das ruas da cidade.
Depois de se hidratar bem, ele pôde, finalmente, deixar escorrer água de seus olhos. O choro estava contido pela desidratação. Não sabemos como ele chegou ali, se foi abandono ou se conseguiu se desvencilhar de uma coisa qualquer e saiu andando sem rumo.
Abrimos o portão de nossa garagem e ele se ofereceu para trabalhar em nosso jardim. Não tínhamos tanta necessidade assim de aparar a grama, mas decidimos dar a ele essa oportunidade de trabalho.
Enquanto ele ficou por ali trabalhando, fomos buscar o seu pagamento, que ele aceitou sem reclamar.
A situação era bem tensa com um cavalo em nossa garagem. Uma parte da história não precisa ser contada. Digamos que ele tenha sido abduzido e levado dali.
Não foram extraterrestres que o levaram, mas alguém muito semelhante a um certo profeta que ficou conhecido como Jesus Cristo.
A operação de resgate precisava ser rápida. A estrada era longa e foi preciso uma pequena parada no meio do caminho, para mais um lanchinho.
Ele não dispensava comida e parecia querer aproveitar cada pedacinho de verde que estivesse ao seu alcance, como se não soubesse quando seria a próxima refeição.
A docilidade era algo que estranhava. Afinal, com tantas referências ruins, era de se esperar que ele evitasse a aproximação. Talvez tenha aprendido a se submeter aos caprichos e à insanidade humana, à base de muito chicote.
Notamos então que, depois de bem alimentado e de receber os primeiros afagos, seus olhos pararam de escorrer.
Pela primeira vez, ele parecia saber que a vida estava mudando.
O resto da viagem ele seguiu a pé, rumo ao alto de uma montanha, um lugar bem isolado e longe de tudo, onde já vivem outros cavalos, também refugiados e resgatados de maus-tratos.
Passou ali algumas semanas em isolamento, com o mínimo possível de contato humano.
Na trilogia Inca, o cavalo simboliza a liberdade e a força. Significa poder interior, liberdade de espírito, viagem xamânica,força e clarividência. Nele, se pode sentir o espírito de liberdade, sobretudo por imaginarmos a vida de seus antepassados, quando ainda viviam em manadas selvagens.
Para os nossos poucos resgatados, tentamos proporcionar um pouco de liberdade. No santuário, eles são animais livres. Nunca mais sentirão o peso das carroças, nem dos ferros que lhes cortam o palato, nem dos freios que lhes ferem as pernas, ou dos cachimbos que lhes quebram as orelhas.
Ainda assim, o contato humano é necessário. Afinal, eles precisam de vacinas, vermífugos, assistência médica e banhos periódicos para se livrarem de parasitas.
Nosso novo amigo passou algumas semanas em descanso, longe de tudo e com o mínimo possível de contato humano. É o que chamamos de período de desintoxicação. Mas ele precisaria ser resgatado uma segunda vez. Precisaria ser ensinado sobre o respeito entre espécies, sobre uma amizade possível e prazerosa entre homens e animais.
E pra isso organizamos uma expedição, rumo ao alto da montanha. O caminho foi longo, no sol escaldante de janeiro.
Contamos com a ajuda de Pedro e Laura, que suaram muito pra subir a montanha, levando para o nosso amigo, ainda sem nome, algo que ele pudesse gostar e que simbolizasse o início de uma amizade.
A aproximação começou tímida para os dois lados, mas aos poucos a natureza passou a comandar a vida.
Naquele momento, ele ganhou um nome. Passará a ser conhecido como Patas Brilhantes. E terá amigos verdadeiros, que o visitarão em todas as férias.
O Patas Brilhantes passou uma vida inteira como escravo. Aprenderá agora coisas novas. Talvez não tenha vida longa, mas isso não importa.
Ele já viveu uns 15 anos, anos de sofrimento e escravidão. O tempo que lhe restar será para resgatar a vida livre de seus antepassados.
Terá que aprender a evitar os perigos da vida selvagem. Nessas terras, ele precisará ficar atento às suçuaranas e, principalmente, às cascavéis.
Infelizmente, alguns de sua espécie que por aqui passaram antes dele terminaram sua história depois de encontros com cobras. Foi o preço que pagaram pela liberdade, mas temos a convicção de que cada um deles foi resgatado.
Tiveram tempo suficiente pra apagar o passado e retomar o caminho evolutivo que havia sido covardemente interrompido.
E que assim seja com todos aqueles que cruzarem nosso caminho e que vieram morar em nosso território.
E as últimas cenas registradas por nossa câmera mostraram um diálogo inaudível:
__Obrigado, Laura. Seremos amigos para sempre.
__ Até breve, amigo.
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