Sabem como começa a nossa história? Com abandono, é claro. Eu e minha irmã fomos jogadas em uma mata (reserva), próxima a um bairro de Contagem.
Talvez a intenção fosse que fizéssemos “o caminho inverso”, que é aquele que alguns cães têm feito, se virando sozinhos, voltando à vida selvagem e desenvolvendo medo dos homens.
Quase conseguiram isso. Nós apanhamos muito e tínhamos pânico de tudo que andasse sobre duas pernas. Até de galinhas nós corríamos.
Mas ali, as contas não fechavam. Não tínhamos a habilidade para a vida livre, não havia presas em abundância pra sustentar uma matilha, e nem tínhamos mais saúde pra durar muito tempo.
Passamos a frequentar as ruas de um bairro próximo, em busca de comida. Conservávamos o medo das pessoas e fugíamos diante de qualquer tentativa de aproximação.
Era o que tínhamos. A Pérola, minha irmã, entrou no cio, o que atraiu outros cães para aumentar nosso grupo. Infelizmente, eles só ficaram enquanto durou o cio e depois partiram, ou voltaram para suas casas. Ao nosso lado, ficou apenas o Negão, que também não tinha casa.
Acreditávamos que os filhotes que viessem, já nascidos em ambiente selvagem, estariam mais adaptados e teriam melhores chances. Ledo engano.
Passamos a ser alimentados, mas as pessoas que nos ajudavam queriam nos capturar, e isso nos deixava mais arredias a cada dia. Os filhotes nasceram e cresceram como deu. Só dois chegaram vivos a uma idade em que já podiam nos acompanhar pelas ruas do bairro.
Algumas fotos foram feitas no tempo em que ainda estávamos nas ruas.
Este filhotinho abaixo, junto com minha irmã Pérola, é o Rick. Ele não sobreviveu. Poucos dias depois que as fotos foram tiradas, ele foi atropelado.
Mais uns dias depois, e as pessoas que nos alimentavam decidiram que não tínhamos condições de cuidar da Lia, a única filhotinha sobrevivente.
Àquela altura, ela já estava infestada de sarna, se desmanchando viva e precisava de cuidados.
Com muito custo, e depois de muita resistência, ela acabou sendo capturada e levada para um lugar próximo ao nosso território.
Pérola também tinha sarna e, em mim, os primeiros sintomas começavam a aparecer.
Nossa matilha, que nem chegou a crescer, começava a desaparecer. O Projeto de uma matilha de lobos em estado selvagem fracassou.
E as coisas, que já estavam ruins, ficaram ainda piores. A Pérola foi capturada em uma manhã, depois de muita resistência e dentes distribuídos aos quatro ventos.
Eu acabei sozinha e prestes a entrar no cio. O Negão, àquela altura, já tinha também sumido.
O cio chegou e, com ele, outros cães machos. Procurei entre eles pelo Negão, que era o pai da Lia. Ele não estava entre os machos que me disputavam. Eu sabia que não teria chance, que meus filhos não sobreviveriam, que a sarna em breve cuidaria de me tirar o pouco que ainda tinha.
Então, achei que não poderia mais resistir. Se havia uma chance, seria trancada em um canil.
Eu me deixei capturar e acabei jogada no mesmo canil onde já estava a Pérola.
Descobrimos que o lugar não era assim tão ruim. Tínhamos cama macia e quentinha, abrigo, comida gostosa e água fresquinha todos os dias.
Descobrimos também que carinho e afeto são essenciais para animais evoluídos como nós.
A vida mudou. Fomos castradas, vacinadas, passamos por exames e cuidados.
Nossos novos amigos nos prometeram que tudo seria diferente, que teríamos donos cuidadosos, e que eles fariam tudo por nós.
Seremos, enfim, felizes. Rendemo-nos à amizade humana e nos tornamos cadelinhas de colo.
Ainda esperávamos por adoção, quando algo aconteceu. O Negão, depois de longo período sumido, decidiu aparecer. Ele era o único macho que nos protegia enquanto vivíamos na mata. Ele era o pai da pequena Lia.
Pouco antes de nosso resgate, ele havia sumido e nunca mais o vimos. E um dia desses, como se adivinhasse que nós havíamos ganhado na loteria, resolveu aparecer aqui na porta.
Não foi uma visita rápida, mas um pedido de socorro. Ele estava destruído, sendo comido vivo por parasitas e larvas. Na mesma hora nossa madrinha o colocou pra dentro, deu nele um banho de tirar macuco e decidiu testar pra ver se nós o aceitaríamos, depois de tanto tempo.
Como não aceitar? O Negão foi o nosso príncipe, nosso herói e defensor. Ficamos felizes por reencontrá-lo, mesmo que esteja doente e triste. Ele passou a dividir o canil conosco. Ficou até mais alegrinho por nos reencontrar.
Também recebeu os mesmos cuidados que recebemos e esperávamos que logo ficasse bonitão como foi um dia. Éramos quatro. Nossa família estava completa. O projeto de uma matilha de lobos não fracassou. Só não seremos selvagens, mas isso é só um detalhe.
Precisávamos de adotantes e esperávamos poder seguir em duplas. Mas, se não desse, que viessem quantos caminhos a vida nos tivesse reservado.
Vencemos muitas etapas, avançamos muito. Pérola, como ainda era mais jovem, tornou-se a mais alegrinha e brincalhona cachorrinha do mundo.
A Lia, apesar da pouca idade, demorou muito a confiar nas pessoas. Tinha se mostrado arredia e assustada, mas no caso dela, há uma explicação: Ela estava mesmo com grande infestação de sarna e os medicamentos e banhos provocam grande coceira e ardência. Então, demorou pra ela ter a oportunidade de experimentar colo.
Ela reclamava, e reclamava muito, diante de qualquer tentativa de aproximação.
Assim que o tratamento terminou, os contatos humanos passaram a ser mais prazerosos e tudo começou a mudar.
O negão estava mesmo bem machucado. Chegou-se a levantar a hipótese de agressão humana, mas na verdade, tudo aquilo era apenas queimadura de sol e uma severa dermatite oportunista, em razão da avançada idade e desnutrição.
O Negão já tinha mais de 10 anos de uma vida mal vivida. Chegou por milagre até aqui e não teria mesmo muito tempo de vida.
E ele parecia saber que seus dias estavam contados, pois procurava a todo tempo aproveitar os minutos que lhe restavam para pedir carinho e colo.
Pérola e ele sempre se deram muito bem e aqui não foi diferente. Ele não tinha o mesmo pique dela, mas ainda assim esboçava algumas brincadeiras.
Talvez ele tenha ainda algum tempo de vida, talvez meses ou menos ainda. Precisávamos mesmo de alguém disposto a mudar a vida dele. Que fosse curta, mas suficiente pra mudar o rumo.
Ele precisava e merecia experimentar o que nunca teve. Mas, infelizmente, não deu tempo.
O estado do Negão piorava a cada dia, ele passou a emagrecer muito, vomitar sem parar e nenhum remédio resolvia. Despediu-se da vida, mas partiu com a certeza de ter sido estimado. A vida que queríamos pra ele, de certa forma, ele teve. Foi no lar temporário, mas ele não sabia que aquele lar era temporário. Então, valeu assim mesmo.
Depois da despedida do Negão, foi a vez de nos despedir da Pérola, que seguiu para um novo lar. Foi recebida com festa pela nova família.
Lia também não teve vida longa. Ela teve muitas complicações. Chegou a perder o movimento das pernas, voltou andar tão rápido e misteriosamente quanto havia parado de andar, emagreceu, voltou a engordar.
Já estava bem e considerada pronta para adoção, quando um problema cardíaco, que nem sabíamos que existia, a levou embora. Pra ela, também foi final feliz.
Por sorte, teve tempo de se entregar ao afeto humano e até aprendeu a brincar. Isso fez toda a diferença pra ela.
Eu continuei por aqui por mais um tempo. O Projeto de uma matilha de lobos não foi exatamente o sucesso que esperávamos.
Mas, pela primeira vez, não me senti apreensiva. Apesar de tudo, depois de tantas e boas mudanças nos últimos dias, eu me dava o direito de sonhar com uma vida melhor.
Pra mim, ficaram as lembranças, algumas alegres, outras tristes. Lembrarei do Negão e da Lia com saudade e com um aperto no peito, por imaginar o que poderia ter sido.
Lembrarei da Pérola, com saudade, mas feliz por saber que ela está bem. Talvez, um dia a vida nos permita o reencontro, mesmo que seja em outras vidas.
Eu continuei no canil, dividindo o canil com outros amigos. Ainda esperava um dia ter a mesma sorte da Pérola. Queria sair dali no colo.
No vídeo abaixo, o Negão, depois do primeiro banho, se secando ao sol e já interagindo conosco. Deixou saudade o nosso Príncipe.
As últimas imagens da Lia são as que gostaríamos de guardar. Ela já não era mais aquela filhotinha doente e arredia. No vídeo abaixo, se vê uma cadelinha mais solta, mais confiante. Infelizmente, não deu.
Pra mim, a adoção também não demorou. Foi em uma feira de adoções, que eu fui escolhida para fazer companhia a um outro macho bem grande e forte, mais forte que o Negão.
Meu novo amigo é um labrador. Tenho certeza de que nos daremos muito bem.
E foi assim que tudo começou…
Um resgate de lucinediafigueiredo@gmail.com
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