Chip Bento. O Retorno

A história que nunca será publicada.

Receber um pedido de ajuda para um acumulador de poodles já era um sinal que não poderia ser ignorado. Assim que pisei naquele território, entendi o que tinha me levado ali.

Pelo menos 70 bons motivos, mas, um deles era especial. O pequeno Chip ainda habitava o ventre de sua mãe, uma cadelinha triste.

Tentei resgatá-la, mesmo que pra isso precisasse comprá-la, pra cumprir a promessa que lhe fiz, de resgatá-lo ainda no ventre de sua mãe.

Foi em vão. Aquele foi um dos trabalhos mais difíceis que já enfrentamos. Já devia ter me conformado com a impossibilidade de cumprir todas as promessas que faço.

Conheci você amiguinho, recém-nascido, e já sem o rabinho, sua marca registrada, que tinha sido arrancado na tesoura por um louco covarde.

Foi impossível não chorar, lembrando daquela cauda inquieta que balançou até o último momento pra me mostrar que estava tudo bem.

Mais angustiante ainda, foi vê-lo naquele ninho de farrapos, sujo, sem nada daquilo que te prometi.

O tempo passou e tive que vê-lo crescer ali, tendo a infância roubada, aprendendo a lutar pra comer. Você e sua irmãzinha, que eu nem tinha coragem de fotografar. Ficava me perguntando se algum dia poderia cumprir pelo menos algunas daquelas promessas.

Prometi a você alguns reencontros. O primeiro deles foi com a Giovanna, que cuidou de você. Ela esteve comigo em sua casa, pra retirar os pontos de alguns de seus amigos que tinham sido castrados.

Naquela oportunidade, coloquei você no colo dela pra fazer umas fotos. Lembro-me quando ela te olhou e disse: “_Estou reconhecendo esses olhinhos.”

E eu não havia dito nada a seu respeito.

Sua irmãzinha, que a essa altura, pra mim já se chamava Chipinha, também recebeu os afagos da Giovanna.

O tempo passou e surgiu a oportunidade de retirar de lá mais alguns filhotes. Infelizmente, você não estava entre eles.

Mais uma vez, tive que deixar aquele lugar, sem levá-lo comigo. Fiz mais algunas fotos suas e de sua irmãzinha, prometendo pra mim mesmo que, se algum dia, a vida o colocasse em minhas mãos, eu não o devolveria. Compraria a briga que precisasse, mas não o devolveria.

Cheguei a implorar para que você me fosse entregue. Ofereci dinheiro, mas nada. Você era especial e, até mesmo aquele louco devia saber disso.

As tentativas de resgate seguiram e o que me restava era registrar seu crescimento e esperar pela oportunidade.

Sempre confiei na vida e sabia que, de alguma forma, protetores invisíveis estavam ali, cuidando, não só de você, mas de todos aqueles animais.

Um dia, recebi a notícia de que mais 12 cães seriam disponibilizados para castração. Depois de castrados, deveriam voltar, como aconteceu de outras vezes.

O mutirão de castração aconteceria na Cão Viver. Dessa vez, você e sua irmãzinha estavam escalados. Era a oportunidade que eu tinha para resgatá-lo.

Dos doze cães que seriam castrados, oito ficaram na Cão Viver, com a autorização que fossem disponibilizados para adoção. Quatro deveriam voltar ao inferno e, dentre os quatro, você e sua irmãzinha.

Lembro-me daquele dia como se fosse hoje. Vocês chegaram à Cão Viver tristes, assustados e muito sujos.

Fiz muitas fotos suas, já sabendo que pro inferno você não voltaria mais. Ainda não sabia bem qual desculpa usaria pra explicar. Tinha algumas hipóteses, mas nenhuma muito convincente.

Evitei fotografar a Chipinha, porque sabia que não teria como resgatá-la também. Isso estava me matando, mas eu não sabia mesmo o que fazer.

Pela primeira vez, senti o peso de conduzir um projeto como O Lobo Alfa. A dúvida me consumia, por não saber se aquela era mesmo a atitude mais certa a tomar.

Pedi orientação àqueles que sempre nos acompanham e recebi o recado que faltava: “Ele é mesmo o Chip e você não precisa devolvê-lo. Tudo vai se encaixar e você vai se surpreender com a condução da vida.”

O consolo foi grande, mas não me tirou a angústia de ter que devolver sua irmãzinha para aquele lugar.

No meio da tarde, quando compareci à Cão Viver para buscá-lo, pude entender como as coisas tinham sido conduzidas.

Naquele mutirão de castração, tinha ocorrido uma morte. Sua irmãzinha, a Chipinha, sofreu uma parada cardiorrespiratória já no final da cirurgia e não resistiu. Segundo a veterinária que a operou, a cirurgia transcorria normalmente e, quando já terminava de fechar, no último ponto, uma parada repentina, sem nada que a justificasse.

As tentativas de reanimá-la foram em vão e a pequenina Chipinha partiu, nos braços daqueles que sempre estiveram conosco.

Daí, foi fácil explicar: Em razão de algum problema genético, causado pela consanguinidade, ambos os filhotes tiveram sérios problemas durante a cirurgia. A fêmea faleceu e o machinho foi internado em estado grave.

O corpo da pequena menina foi devolvido em uma caixa, como prova do ocorrido.

Eu tinha uma viagem já programada e anunciada para os próximos dias e, no meu retorno, pude apenas informar que o machinho também não tinha resistido e, como eu estava viajando, a clínica teria dado destino ao corpo.

E foi assim, Chipinho, com essa história, que pude recebê-lo de volta, como te prometi naquele dia em que você partiu. Algumas daquelas promessas não puderam ser cumpridas, mas agora, tudo seria diferente.

Entendi, naquele momento, que a missão daquela pequena lobinha alegre e cheia de vida era salvar você. De certa forma, ela também foi salva. Em breve estará de volta, e longe de lugares como aquele.

Mais que isso, fui também informado que aquela dupla perda teria provocado uma grande ferida no coração de seu tutor que, embora insano, os amava, do jeito dele. Aqueles animais estavam mesmo amparados e as mudanças teriam que acontecer. Se não fossem consentidas, seriam na marra, com dor e sofrimento, exatamente como nos são dadas as lições que nos recusamos a aceitar.

Deixamos pra trás muitos outros cãezinhos em sofrimento. Dos setenta iniciais, pelo menos uns 25 ainda estão lá. Este episódio talvez tenha fechado as portas para novos resgates, pelo menos por um tempo. Mas agora, temos a certeza ainda maior de que eles estão amparados e que outras mudanças estão a caminho.

Nós não poderíamos recebê-lo em nossa casa naquele momento, porque estávamos com um caso recente de cinomose. Você precisaria receber as primeiras vacinas e ganhar alguma imunidade.

Da Cão Viver, você seguiu para a casa de uma amiga, que o recebeu como recebe tantos outros. Lá você foi feliz e iniciou os preparativos. Vacinas, banhos, cuidados, carinho.

Infelizmente, as marcas daquela infância roubada eram muitas. Você cresceu assustado com vassouras, tampas de panelas, baldes de água e uma gama de artifícios usados por gente má, para calar os latidos daquela numerosa matilha.

Também tinha pânico de gente, o que feria sua natureza.

O hábito de abocanhar furtivamente alguns grãos de ração e correr pra comê-los em um cantinho qualquer também deixava claro que a ração naquele lugar era racionada e que os lobos alfas não deixavam os filhotes comerem.

Na casa da Lucinédia, onde você viveu por algunas semanas, fez amigos e iniciou uma nova fase. Muitos daqueles traumas e medos começaram a ser trabalhados.

Finalmente, depois de algumas vacinas, pudemos recebê-lo em nosso território. Você chegou assustado e tentando se esconder de tudo e de todos.

Logo no primeiro dia, recebeu as boas vindas de Duda e Hanna, e ganhou uma toquinha ao lado da toca da Duda. Ali você se refugiava e sentia-se protegido.

No dia seguinte, iniciamos os trabalhos de socialização. Enforquei o trabalho e passei o dia te pajeando, mas nada que não tenha sido um grande prazer.

A rotina de Duda e Hanna começa às 05 da manhã, com um passeio no jardim pra esvaziar as bexigas. Depois, uma refeição, latidos na porta da rua, correrias pela casa e muitas brincadeiras.

Você estava tímido com tudo aquilo, mas mostrava-se disposto a experimentar as novas atividades.

Pra mim, não havia felicidade maior que vê-lo livre daquele tumor, livre das dores. Se não pude cumprir todas as promessas que lhe fiz, cumprirei aquelas que me forem permitidas.

Não vou descansar até transformá-lo em um lobinho feliz, brincalhão, esperto e corajoso. Quero devolver-lhe a infância roubada. Sei que ainda há tempo. Duda e Hanna, eternas crianças, vão lhe ensinar.

Com tantas promessas a cumprir, não havia tempo a perder. A imunização precisava continuar e, pra isso, escolhi a Vet Master, mais precisamente, o Dr. Mário Rennó, pra continuar o que havia sido iniciado pelo Keisler, lá da Clínica e Pet Shop Estimação.

A vida sempre nos dá uma segunda chance. Foi o Dr. Mário Rennó quem assumiu a tarefa de tentar salvá-lo naquela oportunidade, e quem tomou a decisão de sugerir e executar aquela difícil eutanásia, quando nenhum remédio fazia mais efeito, quando a dor constante lhe tirava a qualidade de vida e ofuscava o brilho no único olho que sobrou inteiro, quando perdemos a luta para aquele câncer.

Era justo que o mesmo médico que interrompeu os abanos de seu rabinho pudesse atendê-lo agora, renascido, como um filhote saudável e com uma vida inteira pela frente, mesmo que não tenha mais o rabinho pra nos mostrar que “está tudo bem”.

O rabinho era só um detalhe. Outros sinais estavam ali. Bem no lugar onde estavam os ferimentos provocados pelo tumor, haviam duas pintas pretas, escondidas atrás da pelagem branca.

Na verdade, não são pintas, mas apenas sinais. Alguém havia de repará-los.

Na Vet Master, eu preenchi sua ficha dando-lhe um nome falso. Eu o chamei de Chico, pra que ninguém desconfiasse. Afinal, dentre as tantas promessas que lhe fiz, a principal delas seria devolvê-lo aos braços da Nívea, que já o havia adotado e que só não perdeu o emprego, na época, porque trabalha na Vet Master.

Ela deixava seus afazeres pra ficar velando seu sono na enfermaria, durante todos os dias em que você precisou ficar internado. E não foram poucos. A bajulação era tanta que às vezes eu tinha a impressão de que você preferia ficar internado que em nossa casa.

Eu já havia decidido que, se ela não o reconhecesse, eu daria um jeito de fazê-la saber que era você quem estava de volta.

Mas não precisei intervir. No primeiro dia que estivemos na Clínica, enquanto estávamos no consultório com o Dr. Mário, a Nívea entrou no consultório, o pegou no colo, abraçando-o forte e dizendo: “_Como se parece com o Chip! Que saudade!”

Eu já previa algo assim, tanto que estava com a câmera pronta pra registrar aquele primeiro encontro. Outros viriam.

Com uma semana, você já havia se acostumado com nossa rotina. As primeiras brincadeiras, as correrias, as bagunças sobre a cama, as disputas dos brinquedos, os colos e as mordidinhas nas almofadas vieram muito rápido. O primeiro latido eu só ouvi depois de duas semanas.

Nos primeiros dias, corria e se escondia quando o resto da matilha resolvia latir na porta da rua. Mas foi só uma questão de tempo pra que sua voz se juntasse às outras.

Conheceu o resto de nossa matilha e foi, como de costume, muito bem recebido.

Olhar o movimento da rua tornou-se um de seus passatempos preferidos, mesmo que não haja tanto movimento assim.

Vez ou outra passa uma alma viva, o que é motivo de muita latição. No início, latia pouco, mas o tempo revelou uma máquina de latir.

Conheceu também a Aninha, uma cadelinha Poodle como você, que resgatamos na SMPA, muito doente, e que ainda luta pra viver e ter uma segunda chance.

Temos ainda alguns compromissos a cumprir, antes de entregá-lo nos braços da Nívea.

As visitas à Vet Master continuaram. Muitas e muitas vacinas. A cada visita, laços antigos se fortaleciam. Àquela altura, você já estava sendo chamado por lá de Chip 2, Chipizinho, Chipinho, Clone do Chip e por aí vai. E o seu nome nos registros da clínica continuava sendo Chico.

A vida não precisava ter te feito tão parecido com aquele cãozinho que um dia abrigou seu espírito. Eu já tinha te reconhecido antes mesmo de você nascer, mas entendi que não custava dar uma forcinha. A Nívea foi a primeira a reparar seus sinais, embora, pra ela, fossem apenas “lindas pintas”. E talvez sejam mesmo apenas pintas.

O tempo passava rápido, mas eu precisava ensiná-lo sobre a infância. O tempo perdido precisava ser recuperado.

As brincadeiras tiveram início e, aos poucos, o medo e a insegurança desapareciam. Duda foi quem te ensinou a brincar de pega-pega. As lutinhas também sempre foram apreciadas por aqui.

Correrias também ajudam. E você se mostrou um cachorrinho muito esperto, ágil e cheio de vida.

Que ironia! Cheio de vida. Se eu tivesse o poder de ver o futuro, não precisaria ter chorado sua morte.

A sequência abaixo nos mostrava que você já estava quase pronto.

Na verdade, faltava uma coisa. Você já estava pronto, mas eu precisava fechar sua história, pra seguir em paz com os encontros, reencontros e despedidas que virão.

Um passeio no campo é sempre uma farra e, pra você, aquela seria uma aventura inesquecível. Acho que eu queria guardar a sensação de que você terá motivos pra se lembrar de mim, pra sentir saudade.

Você já não era mais aquele cãozinho assustado e medroso. Ainda tem medo de estranhos, mas hoje está mais confiante.

A infância parece ter sido recuperada, e com muita força.

Hanna e Duda são ótimas guias. Elas te ensinaram a viver. E você parecia saber que podia confiar naquelas duas lobinhas.

Mesmo nas caminhadas mais longas, você queria estar entre elas. Algumas vezes se aventurava sozinho, mas nunca ia muito longe. Aprendeu a seguir rastros e a experimentar novos sabores, mesmo que fossem apenas frutas caídas ou capim.

Também nos mostoru que está pronto pra viver e brincar com o que achar. A vida está mais leve e mais divertida. Tudo é motivo para brincadeira e bagunça.

Também mostrou que sabe se camuflar, cavar buracos e até nadar.

A coragem de entrar na lagoa é coisa rara. Poucos foram os lobos que aqui vieram e que se aventuraram em águas profundas. Você foi corajoso amigo. Estamos orgulhosos de você.

A correria na terra vermelha, com o corpo ainda molhado, parecia estratégia para tirar o excesso de água. E é bom que seja mesmo.

É Chip. Trate de se secar e se limpar, ou nós dois teremos que dormir na varanda.

Mas a maior surpresa estava por vir. Num dado momento, depois de já ter brincado e corrido muito, você tomou a frente e decidiu liderar a expedição dos lobos.

Atravessou a ponte e partiu em direção ao bosque do outro lado do riacho, com Hanna e Duda em seu rastro. Imaginei que tivessem farejado a trilha deixada por um animal silvestre.

Mas o destino era outro. No meio daquele bosque, ao lado do riacho, havia algo que você precisava ver. Você se aproximou, investigou tudo a seu modo, depois veio a mim, como se perguntasse: _Foi aqui?

Chipinho 45

É isso, amigo. Foi aí mesmo que deixei você, ou melhor, aquele corpinho doente que te serviu da outra vez. Durante os dias que ficamos na fazenda, ele visitava diariamente o bosque, do outro lado do Riacho.

Pra nós humanos, pisar em uma lápide pode ser sinal de desrespeito, mas já aprendemos um pouco sobre a linguagem corporal dos lobos.

Essa foi a forma que você encontrou de nos mostrar que aquilo já não era mais importante.

Daqui há alguns dias, teremos que nos despedir, de novo, mas dessa vez, com aquele final feliz que te prometi. Vou guardar pra sempre a lembrança desse nosso passeio, dentre muitas outras.

Você não vai se lembrar de mim quando estiver em outros braços, e espero mesmo que não tenha motivos pra sentir saudade.

Outros virão e serão tão amados e estimados quanto você. Descobri que despedida é um preço que todo protetor precisa pagar. Mas que sejam todas motivos de alegria e que tragam, além da saudade, a sensação do dever cumprido.

Tudo o que quero é que você seja feliz, Chipinho. Acho que fomos capazes de ensiná-lo sobre felicidade. Hanna e Duda foram importantes. Sei que você não vai esquecê-las.

Chipinho 46

Que a vida te permita cumprir a etapa evolutiva que te foi destinada. Como lhe prometi, agora será diferente. Que a Nívea seja mesmo tudo o que promete ser, e que consiga entender que recebê-lo é uma missão.

Este talvez seja seu último ciclo por aqui, como lobo. A “Terra dos cachorros que falam” te espera.

Chip Bento. Eu acredito em milagre

Atualizando…

O seu encontro com a Nívea, no dia em que te entreguei nos braços dela. Naquele dia, ela já sabia quem era você. Ela te reconheceu sem que eu precisasse falar.

Chipinho adotado 1

Sabíamos que você ficaria assustado nos primeiros dias, mas nada que o tempo e a dedicação de sua nova família não resolvam. Já sabemos que você já é o melhor amigo de infância dos dois lobinhos da casa, e que já entendeu a rotina, principalmente a hora de pular de uma cama pra outra. Nada como uma boa e equilibrada matilha pra fazer um cãozinho feliz.

Chipinho adotado 2

Chipinho adotado 3

Chipinho adotado 4

Cinco anos se passaram desde o resgate do Chipinho. Temos acompanhado sua história, sempre contada com carinho pela Nívia.

As fotos abaixo são de Setembro de 2019.

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