Um boi da cara preta que deixou saudade.

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Nascido numa fazenda qualquer, filho de pais sem expressão, não tinha genética que lhe garantisse uma vida longa. Nasceu condenado a terminar a vida em um matadouro de uma pequena cidade.

Mas carregava uma característica ímpar. Era dócil e afável. O mais dócil de seu pequeno rebanho. Esta característica mudou o rumo de sua história. Foi dado de presente, como animal de estimação, a um garotinho de 2 anos de idade. Foi viver em um santuário, onde sua única função seria a de produzir esterco para uma horta orgânica.

Ao chegar, seu novo dono, buscando em volta a inspiração para lhe escolher um belo nome, não viu nada além de mato. Matinho foi o nome escolhido para aquele pequeno novilho branco, de cara preta. O tempo passou, o pequeno novilho cresceu, cresceu, e cresceu ainda um pouco mais. Tornou-se um touro de botar medo. Mas aquela vida sossegada o tornava ainda mais manso a cada dia.

Para se tornar um ótimo bichinho de estimação, faltava apenas abanar o rabo e andar na coleira. Gostava de se deitar e virar a barriga pra ganhar carinho, espichando as pernas, numa manifesta demonstração de total confiança. Um boi de corte capaz de oferecer a barriga ao seu principal predador.

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Tínhamos a convicção de que o Matinho viveria no santuário por no mínimo ¼ de século e que teria uma vida feliz. Não lhe faltava espaço, capim de qualidade, muito verde, muita água, boas sombras, cuidados médicos, remédios e vacinas.

Mas a vida tinha outros planos. Um encontro com uma cascavel lhe ceifaria a vida.

Deixando de lado a racionalidade e me dando o direito de humanizar um boi sem raça definida…

Como se acreditasse, ou soubesse, que o chão de um santuário é sagrado, não sendo lugar pra um animal morrer, decidiu afastar-se da fazenda. Rompeu duas cercas de arame e afastou-se o mais que pôde dos domínios do santuário. Subiu até o alto de uma montanha, de onde se via um horizonte de montanhas retalhadas, tal como uma colcha de retalhos em vários tons de verde. De seu novo posto, quase se via a curvatura do planeta, tamanha a imensidão do horizonte à sua frente.

Deitou-se de frente para aquela paisagem escolhida a dedo, ou a casco, que dava a noção da liberdade que teve em vida, e deixou que o veneno consumisse seus órgãos internos. Adormeceu e não mais se levantou.

As fotos abaixo mostram a vista do local onde o Matinho “escolheu” para terminar sua história.

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Não deixou descendentes, mas deixou um discípulo. Enquanto ainda era um novilho, nascia naquele santuário o primeiro filhote da Laranja, uma vaca também escolhida pra viver ali, um bezerro que se afeiçoou mais ao Mestre que à própria mãe, como se isto fosse possível entre bovinos.

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Casquinho e Matinho tornaram-se inseparáveis. O discípulo seguia o mestre, como se soubesse que tinha muito a aprender com um boi de cara preta que parecia ter encontrado seu lugar no mundo.

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Casquinho cresceu, já era quase um Touro quando o Matinho se foi.

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Embora sem qualquer parentesco, Casquinho seguiu a regra e superou seu mestre, como se bois de santuário estivessem tomando outro caminho evolutivo, como fizeram os lobos, há 100.000 anos. Além de deitar-se, virar a barriga e espichar as pernas, como fazia o Matinho, o Casco gosta de lamber as pessoas. Uma língua áspera que nem de longe se compara à lambida de um cão, mas ainda assim, uma lambida.

Quanto ao Matinho, além de muita saudade, deixou sua história.

Mas ele ainda receberia um funeral digno. Seu corpo não pôde ser removido do lugar de descanso por ele escolhido. Suas quase vinte arrobas e a dificuldade de acesso ao lugar não permitiam a sua remoção. Nem tampouco pôde ser sepultado ali mesmo, quer fosse porque estava em terras estrangeiras, quer fosse pela topografia do terreno, que não comportava uma cova tão grande. Sua carne foi consumida naturalmente, como a de seus antepassados de vida livre.

De seus restos, foram resgatados apenas seus chifres, cascos e alguns ossos, trazidos de volta aos domínios do santuário pelas mãos de seu tratador. Uma pequena parte pôde ser finalmente sepultada em um dos seus lugares preferidos: Sob a sombra de um grande carvalho. Pra nós que o conhecemos, ficou a saudade e o desejo de um reencontro.

Descanse em paz, amigo.

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E ele voltou, de uma forma inesperada, correndo pelo pasto, dando pinotes, cheio de vida e de energia.

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Não era pra ser, pois a fazenda não produz filhotes. Mas quis a vida que você voltasse aqui, onde encontraria respeito e segurança. Vai levar muito tempo para que animais de sua espécie possam voltar sem medo.

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Bem vindo, amigo, de volta às terras de onde não deveria ter saído.

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